Os Opera Philosophica de Francisco Sanches

Com esta posição anti-aristotélica, Sanches não nega a influição da constituição física dos indivíduos na duração da respetiva vida de cada um, mas na duração da vida das espécies não é o corpo que importa mas a respetiva alma, dado cada espécie ter por natureza um lapso de tempo de vida que lhe é próprio.

A explicação da longevidade e da brevidade da vida nos reinos da Natureza e nas espécies implica uma causa primeira, isto é, Deus, e a dos indivíduos que as constituem, a existência de causas segundas e naturais, que ajudam a explicar porque uns viventes concretos vivem mais do que outros. A discriminação desta causalidade natural constitui o objeto da segunda parte do De longitudine..., na qual o filósofo se funda nós ensinamentos do médico, não hesitando mesmo em recomendar e prescrever preceitos e conselhos higiénicos e dietéticos.

Estes traços gerais são suficientes para indicar que Sanches reportou a explicação da Vida a um sistema explicativo da Natureza —, o que, aliás, não parece muito compatível com o nominalismo do Quod nihil scitur, embora o seja com a posição implícita na primeira obra que deu ao prelo, o Carmen de cometa, cuja conceção não se afigura isenta de coragem moral, na terra em que viu a luz o prestigioso astrólogo e médico Augier Ferier (n. 1513) e em tempos em que a rainha de França, Catarina de Médicis, se rodeava de astrólogos e de magos.

O Carmen de cometa, no qual considera a legitimidade do juízo astrológico, assenta, com efeito, no pressuposto de que é condição da pensabilidade do Mundo a existência da «Natureza eterna», isto é, de uma ordem universal na qual tudo se encadeia, salvo as ações humanas, que são livres, de sorte que, dadas certas causas, se seguem normalmente certos efeitos coerentes com essas causas. Neste poemeto, como no De longitudine et breuitate vitae liber, filosofia e explicação da Natureza identificam-se, por  forma que o filosofar consiste em cogitar uma Metafísica que seja ao mesmo tempo uma Física, dado que Deus e a Natureza não agem em vão, como diz no último destes livros: Deus et Natura nihil faciant frustra (69, 11).

A epistemologia sensista do Quod nihil scitur e dos demais escritos que até nós chegaram desentranhavam uma teoria da Natureza —, se se não preferir a inversa, isto é, de que foi a intuição ou explicação da realidade física que gerou na mente de Sanches a conceção sensista do conhecimento. E que, ao contrário de Descartes, que iniciou o curso do seu filosofar de olhos postos na irresistibilidade lógica da demonstração matemática como paradigma do Saber, Sanches jamais deixou de ter presente a formação e a experiência clínica, as quais lhe ensinaram a inutilidade do verbalismo e do escolasticismo. Por isso, a reflexão cartesiana gerou uma conceção da Ciência essencialmente demonstrativa e explicativa, isto é, um ideal de Ciência em que a coisa se torna sabida quando se lhe conhece a sua razão de ser; e a reflexão sanchesiana anunciou e geraria uma conceção da Ciência essencialmente mostrativa e descritiva, isto é, uma conceção em que a coisa se considera sabida quando é apreendida pela experiência sensível. Daqui, a repulsa de Sanches por todas as abstrações ou pressupostos que se insiram no ato da perceção, o propósito reiteradamente confessado de conjugar a problemática da Filosofia com os ensinamentos da Medicina e uma teoria da Natureza diretamente fundada no contato imediato da realidade natural com a mente cognoscente.

Perdido o Examen rerum, cuja publicação iminente anunciou, como vimos, as breves referências esparsas pela obra conhecida permitem, no entanto, admitir que Sanches abordou a teorização da Natureza com o sentido imanentista do De rerum maura iuxta propria principia, que Bernardino Telésio deu a público em 1565.

Com a tradição, Sanches distinguiu a causalidade primeira, que é a vontade divina, da causalidade segunda, que é a causalidade natural. Mediante esta distinção, julgou obviar ao ateísmo, o qual indaga somente os efeitos da causalidade natural, e à credulidade do vulgo, que tudo explica por causas sobrenaturais e faz de Deus, no juízo de agnósticos, «o asilo de ignorantes », para empregar as próprias palavras de Sanches, que, por singular coincidência, são quase as mesmas que Espinosa empregará mais tarde na Ética. A superação das duas limitações encontrou-a Sanches na conceção da Natureza como ancilla Dei, mas na qual, salvo nas intervenções miraculosas, a vontade divina opera mediante as  causas secundárias ou naturais. Por isso, a sapientia summa consiste em remontar à causa primeira mediante o conhecimento das causas segundas, de sorte que o conhecimento das causas segundas constitui um assunto não só legítimo mas ainda necessário à compreensão da causa suprema.

Sanches abordou a explicação da Natureza com os conceitos e quadros da física aristotélica, mas repudiou algumas das explicações do Estagirita. É um aristotélico revisionista: com o Filósofo, como se dizia na Idade Média, admitiu a existência de uma só matéria e a da contrariedade universal como condição da geração dos seres naturais, mas divergiu dele, dentre outros pontos, relativamente ao número dos elementos e dos contrários fundamentais.

Aristóteles estabelecera que a Natureza era teatro de quatro elementos — ar, fogo, água e terra —, de duas qualidades ativas, o calor e o frio, e de duas qualidades passivas, a secura e a humidade, derivadas das qualidades ativas. Sanches, na linha de Telésio mas influenciado mais particularmente por Cardano, segundo cremos e acima dissemos, pensou que esta teoria quebra a unidade da Natureza, pelo que foi levado a admitir, com Cardano, a existência de três elementos — ar, água e terra (Excerpta, XI) e de duas qualidades fundamentais, o calor e a humidade, atuando o calor como força, ato e fecundante, e a humidade, como matéria, possibilidade e fecundada.

Calor e humidade são de essência unitária e simples, mas o calor, porque procede do Sol, é o mesmo no mundo celeste e no mundo terrestre, o que se não pode afirmar da humidade. É o calor a força ativa que compõe, mistura e decompõe tudo o que existe, sendo a humidade o que conserva o calor e impede que ele se evole para o seu lugar natural, que é a região celeste donde procede.

Daqui resulta que a existência e conservação dos seres naturais dependem de certa quantidade de calor e de certa quantidade de humidade, e que quando se altera a respetiva relação os seres se corrompem.

Não se vê claramente como harmonizava, se é que pensou no caso, esta conceção do calor e do húmido como qualidades únicas e fundamentais com a teoria dos quatro humores, de Galeno, segundo a qual os humores são o produto das quatro qualidades fundamentais, que estão na raiz do existente —, o quente, o frio, o seco e o húmido. Houvesse ou não pensado nisto, Sanches, coerentemente, admitiu que os seres animados se não furtam à alternância e às vicissitudes da lei fundamental da existência e da conservação dos seres, a qual, sob outro aspeto, mostra que Deus e a Natureza nada produzem em vão. Sanches teve por sem dúvida que a vida dos seres humanos resulta da união da alma e do corpo, de tal sorte que os fenómenos que neles se passam têm começo num ou noutro dos elementos do composto. Daqui, a conexão íntima da alma e do corpo, cujas vicissitudes explicam as paixões e a própria duração dos seres animados


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