Os Opera Philosophica de Francisco Sanches

As concisas e esparsas referências ao Examen rerum não permitem um juízo interpretativo seguro acerca da conceção física de Sanches. Parece, no entanto, verosímil que configurou a Natureza física como sistema de gerações e de corrupções contínuas, no seio de uma só matéria, a que chamava o húmido, e de uma só força ativa, a que chamava o calor, resolvendo, consequentemente, o processo cósmico no dinamismo destes dois princípios.

Embora menos expressiva que a conceção de Bernardino Telésio, pulsa, não obstante, na conceção do Examen rerum a ideia de que os segredos da Natureza somente serão esclarecidos por princípios ativos imanentes à própria Natureza. Daqui, a sua significação histórica: se pouco ou nada diz ao nosso saber atual, ela anuncia, no entanto, a alvorada da conceção de lei natural e da função prática da Ciência, cuja condição prévia, e relativamente próxima, radica neste esforço filosófico-científico que libertou a consideração objetiva da Natureza do véu de potências ocultas e maravilhosas para a orientar no sentido estritamente natural.

Disse Malebranche que «para ser filósofo peripatético somente é necessário acreditar e conservar». Este juízo do penetrante metafísico, que parece ter visado diretamente o Quod nihil scitur em certo passo do De la recherche de la vérité, não se aplica a Francisco Sanches, que fez da interrogação dubitativa, do Quid que tantas vezes se lhe soltou da pena incoercível e desperto, a seiva nutriente do pensamento.

Teoricamente, Sanches foi a antítese do pensamento crédulo, embora socialmente e na ordem dos valores da conduta tenha sido conservador, como tudo indica, a começar no facto, bem significativo, de haver utilizado os tropos de Enesidemo com exceção do décimo, baseado na diversidade dos costumes e das opiniões, tão do agrado de Montaigne e dos «libertinos», designadamente La Mothe le Vayer. Sentiu e compreendeu com clarividência que já se não podia ser sábio nem filósofo com o saber da tradição aristotélica e que a teoria da Ciência carecia de ser fundada em bases radicalmente firmes. Perdida a confiança com que no início do século dezasseis os melhores espíritos se voltaram para a Antiguidade na esperança de uma renascença que fosse ao mesmo tempo uma recuperação, Sanches viu claramente que o problema primacial do seu tempo consistia na fundamentação radical dos conhecimentos científicos, cujo desenvolvimento dependeria da firmeza das bases e do methodus sciendi, que é o título significativo de um dos livros que se propôs escrever e muito provavelmente não passou de projeto.

Daí, o haver substituído a reflexão ontológica tradicional pelo exame da mente cognoscente e da validade do conhecimento; e daí, ainda, o haver concebido a reflexão filosófica como instauração e não como restauração. Por isso, como todos os que aspiram a ser grandes construtores, Sanches começou por ser grande demolidor. Da edificação pouco nos legou, tão pouco que mal se descobre a traça do que planeara; porém, da demolição, ouvem-se ainda, e provavelmente jamais se extinguirão completamente, os ecos vibrantes da picareta com que ajudou a derrubar a construção escolástica da teoria do Saber. Porque tão grande diferença entre a escassez dos materiais da construção e a abundância de destroços da demolição?

A resposta não é fácil, nem é provável que o venha a ser; creio, no entanto, que Sanches não construiu a teoria da «ciência firme”que prometeu, por dois motivos: primeiramente, por ser impossível fundar o conhecimento científico somente na empiria da recetividade sensorial, ou por outras, palavras, na conceção subjacente ao Quod nihil scitur de que a sensação é veraz e que o erro somente se dá no juízo a propósito da sensação, quando a ultrapassa e interpreta; e em segundo lugar, por não ter vinculado, assim em teoria como na prática, a observação dos factos à respetiva demonstração, satisfazendo-se com a simples mostração dos dados sensoriais.

Daqui, o pensamento de Sanches, historicamente considerado, assinalar principalmente a crise da teoria da Ciência tradicional. O radicalismo do Quod nihil scitur, que é a sua obra capital e a que lhe configura a personalidade filosófica, constitui o testemunho vivo do divórcio existente ao tempo entre os novos conhecimentos obtidos por observação direta da Natureza e por via indutiva e a conceção dialética e dedutiva do Saber, ensinada nas Escolas.

As viragens decisivas no curso do pensamento são, porém, as que orientam a Filosofia com sentido radical e ab ovo, e não as que somente contestam e refutam. Sanches teve a intuição viva da instância do seu tempo, mas porque não pensou a conexão da reflexão filosófica e do saber científico com o vigor e com a decisão que aplicou à refutação do verbalismo dialético, da lógica disputante e da credibilidade dos conhecimentos adquiridos sem experiência consciente e sensível, o seu pensamento ficou aquém do dos génios admiráveis que no século XVII instituíram a Ciência e a Filosofia modernas. Sem o radicalismo crítico de Sanches não se compreende o surto do pensamento moderno, mas o pensamento moderno, enquanto pensamento construtivo, não se explica com o radicalismo de Sanches.

Quando deu a público, em 1581, o Quod nihil scitur, haviam decorrido três anos sobre o aparecimento em Roma do tomo I dos comentários de Pedro da Fonseca In libros metaphysicorum Aristotelis. Nestas obras, das mais notáveis que a consciência reflexiva de portugueses tem cogitado, opunham-se duas conceções da Filosofia e dois ideais da Ciência: uma, a do Aristóteles Conimbricense, significava a restauração do pensamento dogmático e a da metafísica do ser; outra, a do «cético de Toulouse», a apoteose do pensamento antidogmático e a redução da Filosofia ao plano da Ciência. Duas atitudes que sempre se digladiaram e cujos antagonismos e vicissitudes tecem em grande parte a história do pensamento filosófico. Um, rasgou perspetivas metafísicas, sem as quais o Universo se não torna harmoniosamente inteligível; outro, formulou dúvidas incitantes, sem as quais não há heroísmo da inteligência nem progresso do Saber e cuja superação se não alcança com a contemplação de essências inteligíveis nem com o jogo subtil do encadeamento de conceitos, mas pela aplicação da consciência reflexiva como disciplina de observação e de integração da mente observadora nos limites da razão crítica.

Por isso, Francisco Sanches é um dos mestres sempre vivos que ensinam a lição antiga, sempre esquecida e sempre custosa de aprender, de que as verdades são esquivas e nunca se encontram nos rodeios que limitam o horizonte da observação e da reflexão com a falácia de palavras ou com o esconjuro de teorizações.


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