Os Opera Philosophica de Francisco Sanches

A par da facilidade no Latim, Sanches também mostra prontidão e desembaraço nas artes do trívio, especialmente na Dialética (ou Lógica), e nas do quadrívio, especialmente na Geometria, isto é, no conhecimento dos Elementos de Euclides, e na teoria da Esfera. Há períodos no Quod nihil scitur nutridos de formação humanista, aliás bem visível também na técnica dos comentários aristotélicos, de tal sorte que não é arriscado afirmar-se que a adolescência de Sanches foi orientada por mestres exigentes no apelo da erudição em relação direta e precisa com a literalidade dos passos a compreender e a explicar satisfatoriamente; e por declaração própria se sabe que também foi iniciado nas subtilezas da disputa silogística, cujo ergotismo falacioso e gárrulo lhe gerou a sensação da inutilidade e da perda de tempo em prejuízo do conhecimento de qualquer explicação da realidade natural.

Com a didática orientada para a exatidão e para o bom gosto dos escritores antigos — Virgílio, Horácio, Ovídio, aparecem na pena de Sanches — com o ensino paralelo das letras do trívio e das ciências do quadrívio, embora com um Mestre de Lógica mais ou menos fiel à tradição sumulista e disputante, o Colégio de Guyenne aparece-nos como a escola que gravou na mente do futuro filósofo o sentimento da vacuidade da disputa silogística e do saber que se nutre de abstrações e se move in verba magistri.

Da estadia na Itália pouquíssimo se sabe, e esse pouco mal consente conjeturas de alguma consistência. Pode, não obstante, pensar-se que foi a lição viva de algum mestre italiano que lhe despertou o gosto pelos estudos de re medica, que desenvolveu e concluiu em Montpellier, assim como foi a leitura dos filósofos naturalistas italianos, especialmente Jerónimo Cardano, que lhe despertou a problemática do Examen rerum, talvez o seu primeiro escrito e aquele a cujas ideias mais vezes se referiu.

Com ser sumariamente conhecido e em grande parte conjetural, o currículo escolar de Sanches mostra que aos vinte e três anos ele havia adquirido a lição dos compêndios e o conhecimento da diversidade dos magistérios e do incomparável livro da experiência vivida em meios, gentes e linguagens diferentes, e porque nascera rico de dotes intelectuais e de recursos materiais a afirmação do seu talento dependia, por assim dizer, do ensejo das circunstâncias.

Foi Toulouse que lhas proporcionou. Montpellier conferiu-lhe os títulos universitários e indicou-lhe o magistério superior como destino da nativa vocação, mas não é menos certo que teve de procurar alhures e que a famosa Faculdade monspessulana não pôde ou não quis dar-lhe, talvez por motivos confessionais, tão receosos e intolerantes na França meridional da época, talvez por insuficiência de padrinho ou protetor.

Foi em Toulouse que exerceu o magistério, primeiramente em Artes e depois em Medicina, praticou a clínica, constituiu família, estabilizou a vida e o seu pensamento filosófico se afirmou publicamente como expressão de um ideal que, para se constituir, teve de romper com a sistemática tradicional e com a analítica da metodologia disputante e verb alis ta.

De si próprio disse Sanches, no Quod nihil scitur, que nascera com propensão para o estudo da Natureza — A prima vita, Naturae contemplationi addictus minutim omnia inquirebam, 1, 25-6, e quiçá por ela, secundada pela formação do Colégio de Guyenne — recorde-se que Montaigne, parente espiritual de Sanches, na atitude inquiridora e dubitativa, não se esqueceu de assinalar o que devia à famosa escola —, a sua mentalidade adquiriu a forma mentis do observador e, sobretudo, a da razão que reflete e pensa por si, que não a do erudito. Daí, a sua admiração por Aristóteles, enquanto observador — Aristotelem inter acutissimos Naturae scrutatores plurimum valere iudico (Qns., 3, 34) — e o desapreço pelos que juraram in verba magistri, aclamando-o como Veritatis dictator (Qns., 2, 40-41).

O emprego frequente da interrogativa Quid? É bem o símile da sua mente inclinada irresistivelmente a questionar e a examinar o quê, o como e o porquê de tudo o que se lhe oferecia. Leu bastante, embora não seja copioso o catálogo das suas citações, e informou-se conscienciosamente, mas, no íntimo, procurou vencer as dificuldades e problemas com a reflexão pessoal e não com o peso da autoridade de outrem. Esta maneira de ser, em geral, prefere a sagacidade à vastidão da informação; daí, a atitude constitutivamente aporética e a tendência para procurar contrastes e para fazer ressaltar equívocos, a qual aqui e além salpica de gracejos e de sarcasmos a marcha da argumentação.

Temperamento combativo, pelo menos com a pena na mão, dado a querelas e como que instintivamente em guarda contra possíveis adversários, o pensamento de Sanches também se não furtou à intenção polemizante, de tal modo que quase se é levado a crer que as ideias lhe ocorriam ao repelão do pensar de outrem. Pensava, opondo-se. Assim, o Carmen de cometa foi composto contra o Discours sur ce que menace devoir advenir la comete apparue à Lyon le 12 de ce mois de Nouembre 1577, de François Junctini; o De diuinatione per sommum ad Aristotelem, foi pensado, se assim se pode dizer, contra Jerónimo Cardano, e o Quod nihil scitur é possível, como mostramos no apêndice à presente introdução, que haja sido pensado contra Giordano Bruno, sem embargo de também o ser contra a lógica dos sumulistas.

Vivendo convictamente as suas ideias e incitado pela índole personalista e combativa, a reflexão de Sanches, principalmente no Quod nihil scitur, tem a desenvoltura de um franco-atirador, mais atento ao contra do que ao pro, tão infatigável e vigilante que quando poisa a pena se compraz em lutar consigo mesmo para apanhar a meada dos próprios pensamentos. «Irritado, arremessei muitas vezes os livros para longe de mim, confessa no Quod nihil scitur, e fugi do meu próprio gabinete, mas, na cidade ou no campo, penso sempre nalguma coisa e nunca me encontro menos só do que quando estou desacompanhado, nem menos ocioso do que quando estou desocupado: trago comigo um inimigo a que não posso fugir”(20, 30-33).

Graças a esta tendência, senão conformação mental, a consciência reflexiva de Sanches foi acentuadamente crítica e a sua conceção da Filosofia, tendencialmente contenciosa; por isso, se é relativamente fácil organizar o elenco do que teve por dubitativo e erróneo, é difícil apreender o que o pensador independente teve por certo e assinalar o alvo principal a que visou a pontaria do franco-atirador.

Os escritos filosóficos de Sanches nasceram da reflexão que se enfrenta consigo mesma, como o Quod nihil scitur e o Examen rerum, cuja conceção central se pode determinar por alusões esparsas, e do zelo do mestre empenhado em esclarecer as peças do corpus aristotélico de mais estreita relação com a sua formação médica. Estão neste caso o De longitudine et breuitate vitae, o In librum Aristotelis Physiognomicon commentarius e o De diuinatione per sommum ad Aristotelem.

Trabalhador tenaz e escritor operoso, mormente se se admitir que deixou mais ou menos ultimados todos os escritos que trouxe entre mãos e dos quais sabemos somente os títulos, a sua obra exprime a atitude estritamente intelectual, constante e sem desvios ostensivos para a exortação ou para a reprimenda moral, política ou religiosa.

Dominam-na dois grandes assuntos: a Medicina e a Filosofia, enquanto reflexão sobre o alcance e o valor do conhecimento e expressão da conceção da Natureza. O corpus das suas obras filosóficas é menor que o das obras médicas, sendo constituído atualmente pelos escritos que Sanches redigiu com intenção filosófica e os seus herdeiros reuniram postumamente e por alguns outros escritos que se lhe podem juntar corno subsídio ou ampliação.


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