Os Opera Philosophica de Francisco Sanches

Sanches não possuiu nem se deixou possuir pela mentalidade do sábio que observa e procura traduzir pelo cálculo exato da matemática o resultado da observação. A ciência de que partiu e lhe nutriu a reflexão não foi a Física, como em Galileu, nem a Matemática, como em Descartes, mas a Medicina, cujos conhecimentos, aliás, cedo reconheceu que implicam fundamentos sem os quais eles se não explicam cabalmente. Daí, a reflexão de Sanches não haver separado a Filosofia da Medicina — ut Medicinam Philosophiae coniungamus, diz expressivamente no De longitudine et breuitate vitae (65, 1) — e ter incidido particularmente sobre problemas epistemológicos pressupostos pelos conhecimentos médicos. Foi, pois, a Medicina, e não outra, a ciência que na mente de Sanches despertou a problematicidade filosófica; consequentemente, o ponto de partida do seu filosofar radica no conhecimento implícito na atividade intelectual do médico e o desenvolvimento das suas reflexões fez-se com fito numa teoria da Ciência coerente com o saber da Medicina. Daí, ainda, o sentido empírico da sua epistemologia e o repúdio da atitude escolar e escolástica que julga superar e resolver os problemas quando encontra uma plataforma de conciliação para as diversidades e antagonismos do saber exclusivamente livresco.

Sanches não dispensou os livros, como ninguém os pode dispensar, mas raciocinou predominantemente com ideias, próprias ou de outrem, e sobre factos de sua observação ou coligidos e referidos por outrem, e não sobre livros, isto é, sobre opiniões expressas. Os livros serviam-lhe de repositório de informação e não de cânone normativo, de incitação e não de descargo, pelo que não dissimulou o desapreço pela erudição em si e por si mesma, e sobretudo pelo argumento de autoridade, bem claro em palavras terminantes e na relativa sobriedade das citações.

A independência de juízo, constitutiva da sua maneira de ser, impediu-o de jurare in verba magistri, para empregar as próprias palavras da epístola ao leitor do Quod nihil scitur, e, consequentemente, induziu-o a procurar a verdade até onde e como a razão lhe dissesse que isso era possível. Podem indicar-se com mais ou menos exatidão algumas montes livrescas das páginas de Sanches, mas a prefiguração do seu pensamento mediante o resultado de tais investigações é suscetível de conduzir a interpretações limitadas e até falsas.

Pela forma, viva e ágil, de estilo espontâneo e repentino, principalmente nas páginas do Quod nihil scitur, como pelo método, claro e ordenado, e pelo fundo, constante apesar de diversificado, a obra filosófica de Sanches tem o selo da sua individualidade e o da unidade das ideias, coerente com esta noção primária e fundamental: a Ciência perfeita é inacessível.

Adquiriu Sanches esta noção por via intuitiva, isto é, em imediata conexão com a marcha da sua formação médica, embora mais tarde a robustecesse com a argumentação dos céticos gregos, ou, pelo contrário, formou-a por assimilação erudita, em consequência de se haver convencido do valor probatório da mensagem da Nova Academia?

Geneticamente, é este o primeiro problema que a filosofia sanchesiana suscita —, e problema fundamental, porque, num caso, ter-se-á um pensador independente, fiel à sua intuição normativa e englobante, qualquer que fosse a procedência e fonte de alguns dos seus raciocínios, e noutro, um erudito mais ou menos hábil no aproveitamento e conformação do pensar alheio.

Historicamente, a elaboração do pensamento de Sanches operou-se em tempos e locais favoráveis à eclosão do ceticismo. As «novidades» provenientes da Antiguidade recuperada pela erudição e as que irrompiam da revelação de novos sítios do Globo recém-descoberto; a diversidade de crenças, de costumes e de comportamentos sociais que os livros de viajantes davam a conhecer; o séquito de ruínas que sempre acompanha a intransigência das lutas civis; o antagonismo das diversas soluções dogmáticas em relação aos mesmos problemas e as traduções latinas das obras de Sexto Empírico, primeiramente das Hipotiposes Pirrónicas, em 1562, por Henri Estienne, e depois, em 1569, do Contra Matemáticos, por Gentien Hervet, mestre do Colégio de Guyenne, em Bordéus, explicam suficientemente que o ceticismo tivesse sido no último quartel do século XVI uma expressiva manifestação do homem culto e como que uma exigência da situação cultural, da qual sairiam a reflexão metodológica e a nova reposição de problemas, uma e outra vivas e atuantes em Descartes, como em nenhuma outra mente.

No plano estritamente conceptual, o ceticismo foi anunciado por Henrique Cornélio Agripa (1486-1534) com o De incertitudine et vanitate scientiarum, e adotaram-no em França, que é o país que importa considerar, dentre outros, Guy de Brués, autor dos Dialogues contre les nouveaux académiciens... (1557) e, com inconfundível personalidade, Montaigne, que na Apologie de Raymond de Sebonde, redigida circa 1575, se compraz em denunciar a debilidade e a impotência da razão humana.

A reflexão de Sanches foi sensível à sugerência destas ideias, mas o seu ceticismo incidiu somente, como adiante acentuaremos, sobre o saber explicativo e não sobre o saber normativo, isto é, o saber relativo à conduta e aos valores ético-religiosos. Apesar da universalidade do título, o Quod nihil scitur ocupa-se exclusivamente da inanidade das bases em que assentava o saber científico tradicional, bastando este facto para mostrar que o ceticismo sanchesiano não deve ser considerado em plano idêntico ao de Montaigne e de Charron.

Nestes dois pensadores, a dúvida foi pensada como condição inerente à natureza humana e o ceticismo foi desenvolvido principalmente com sentido psicológico e ético, e até se pode dizer de ambos, generalizando o juízo de Malebranche acerca do autor dos Essais, que duvidaram, porque «il était nécessaire de son temps pour passear pour habile et pour galant homme, de douter de tout». Um e outro foram pedir à debilidade da razão o fundamento das ideias que orientassem a conduta; na mente de Sanches, pelo contrário, o ceticismo nasceu e foi pensado como condição prévia de uma teoria da Ciência.

Pensou Dilthey que, «no que respeita ao problema do conhecimento, a época de Descartes arranca do estado da polémica entre Carnéades e os estoicos. O ceticismo antigo fora renovado por três pensadores educados em Toulouse: Montaigne, Sanches e Charron; e os afãs para alcançar uma base firme para o conhecimento apoiam-se no ponto a que tinham chegado os antigos. Foi princípio capital o asserto de que a impressão sensível, como tal, não era verdadeira nem falsa e que só o juízo que se lhe acrescenta, contém verdade ou erro».

Estes juízos do insigne pensador são nuclearmente verdadeiros em relação ao ceticismo quinhentista, mas podem fazer crer que o ceticismo sanchesiano procede diretamente e continua o ceticismo helénico, o que temos por inexato. Sanches conheceu a literatura cética grega e é significativo que tivesse subscrito a carta de réplica a Cristóvão Clávio com o pseudónimo de Carnéades; não obstante, como adiante acentuaremos, aplicou a argumentação da Nova Academia somente em relação a certa definição da Ciência e não a todas. Daqui, a ilação legítima de que a sua reflexão filosófica foi principalmente o desenvolvimento da intuição, espontânea num médico, de que o espírito só conhece cabalmente o que lhe é dado imediatamente na perceção e nos respetivos limites dela.


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