Os Opera Philosophica de Francisco Sanches

Sanches não cita jamais os escritos de Sexto Empírico, invocando como fonte da argumentação cética, no Quod nihil scitiur, o artigo de Diógenes Laércio sobre Pirro, no qual encontrava os «tropos”de Enesidemo e os argumentos de Agripa, mas temos por sem dúvida que manuseou também as Hipotiposes Pirrónicas, na referida tradução de Henri Estienne, cujo estilo, designadamente do prefácio, parece ter influenciado fortemente o das páginas do Quod nihil scitur. Estas leituras, porém, não suscitaram a reflexão de Sanches; deram-lhe, sim, vigor, robustecendo o sensismo da sua intuição epistemológica, que nasceu da sua experiência de médico — Solent autem medici sensibus saepe magis tribuere quam rationi, escreveu no De pulsibus— e cresceu com a lição de empirismo, de precaução dubitativa e de anelo de firmeza que se desprende dos livros médicos de Galeno e das suas páginas de significado filosófico.

Como Galeno, de cujo «divino engenho”se confessou admirador, Sanches pensa que as verdades metafísicas ultrapassam as nossas possibilidades e que os sentidos e o entendimento conduzem a conhecimentos exatos quando aplicados com método. O inegável recurso ao arsenal de argumentos legado pelos céticos gregos é ulterior a esta atitude de médico empírico, oposta à de médico metódico, no sentido antigo da palavra, pelo que o ceticismo de Sanches não recaiu sobre a própria capacidade da razão humana mas apenas sobre certas conceções da Ciência que vão além da empíria das sensações.

Tudo o que Sanches escreveu com intenção filosófica brotou, mais ou menos ostensivamente, da interrogação dubitativa, condensada no Quid? De tão frequente emprego na sua pena, e todas as respostas aos temas e problemas que o ocuparam radicam na conceção gnosiológica da perceção externa como fonte e limite do único conhecimento exato realmente possível.

É esta intuição, ou noção fundamental, que Sanches não explicitou, nem podia explicitar por intrínseca impossibilidade, que ilumina a filosofia de Francisco Sanches e esclarece as duas teorias em que ela principalmente se polarizou: a do fundamento do Saber e a da explicação da Natureza. Atentemos numa e noutra.

As fontes donde flui a teoria sanchesiana do Saber provêm, principal e substancialmente, do Quod nihil scitur e do De diuinatione per somnum ad Aristotelem. Perdido o Methodus ou Modus sciendi, anunciado no Quod nihil scitur e cuja ultimação é muito duvidosa, como acima dissemos, as reflexões lógicas e epistemológicas de Sanches têm quase exclusivamente teor crítico ou refutativo.

O Quod nihil scitur, cujo título de ilimitado alcance promete a fundamentação de um ceticismo radical e absoluto, que aliás as suas páginas finais desmentem e poderosamente concorreu para a celebridade de Sanches, procura principalmente demonstrar a impossibilidade da «ciência perfeita»; e os demais escritos, incluindo os comentários aristotélicos, salvo o In Physiognomicon, de intenção predominantemente epistemológica, que não de sentido histórico ou puramente interpretativo, têm por objeto pontos de vista ou teorias incompatíveis com a conceção sensista do conhecimento.

A vacuidade do saber que não radique imediata e exclusivamente na experiência sensível e se não mantenha nos limites dela constitui, com efeito, o objetivo da crítica epistemológica de Sanches. Anunciou-a, por assim dizer, nas primeiras linhas do Quod nihil scitur, ao advertir o leitor do que tinha por «inexistente», ou sejam os átomos de Demócrito, as Ideias de Platão, os números de Pitágoras, os universais de Aristóteles, e as conceções do intelecto ativo e as inteligências separadas (Qns., 2, 19-20 e Excerpta, I).

Começou, pois, por dizer claramente que não reconhecia a existência de realidades meramente inteligíveis, nem considerava necessária à explicação científica princípios, formas ou universais que transcendessem a experiência imediata. Explicitava, assim, a sua intuição fundamental, acentuando que os sentidos não percebem, nem podem perceber, o absoluto. Consequentemente, careciam de razão de ser todos os problemas que a filosofia escolástica debatia com base na noção de essência, designadamente a relação das essências entre si, o passo da essência e a explicação da individuação. Negar a existência de Ideias, de formas e de princípios transcendentais era, na mente de Sanches, uma maneira de afirmar que há somente sensações, e dizer que há somente sensações, equivale a dizer que as sensações dão todo o conhecimento acerca das coisas e das respetivas propriedades.

Mediante estas exclusões e negações, significava que a verdade se não encontraria em seres de razão, nem carecia de formas a priori, porque somente seria possível descobri-la nos factos, isto é, na experiência sensível e nos limites dela. Sotopor ou condicionar o mundo físico dado imediatamente na sensação ao mundo de seres ideais, metafísico ou transcendental, apresentava-se-lhe, consequentemente, como o erro máximo que cumpria eliminar; e porque a filosofia e a teoria da Ciência derivadas de Platão e de Aristóteles haviam recorrido a universais para explicar o particular, cumpria agora lançar a dúvida sobre tudo o que nascera sob esta conceção e situar o espírito exclusivamente no imediato e concreto dos dados da experiência sensível.

Resolvido a alcançar explicações coerentes com o sensismo da sua intuição fundamental, Sanches iniciou a reflexão sob o estímulo da consciência da ignorância, isto é, no seu dizer, na pressuposição de que nada se sabe, pelo que, consequentemente, «revocou tudo em dúvida, como se até então nada se tivesse dito»Psicologicamente, a sua posição foi então análoga à que Descartes expôs mais tarde na quarta parte do Discurso do Método e na primeira das Meditações Metafísicas, sendo eminentemente crível que o Quod nihil scitur se contasse entre os «vários livros escritos por céticos e académicos» que o genial filósofo francês declara nas Respostas às Segundas Objeções às Meditações Metafísicas ter lido e até que tivesse presente a página vívida e sugestiva de Sanches ao leitor do Quod nihil scitur quando deu forma literária às suas reflexões sobre a nascente da dúvida.

Sob dois pontos de vista pode ser considerada a possível influência de Sanches no pensamento de Descartes: externamente, pela ilação dos factos histórico-biográficos que sugerem ou indicam que o autor do Discurso do Método teve conhecimento do Quod nihil scitur, como fez H. Pierre Casac no escrito inédito L'Espagnol Don Francisco Sanchez, dit te Sceptique, Professeur Royal de Philosophie et de Médecine à l'Université de Toulouse (1550-1623). Contribution à l'histoire de sa vie; ou internamente, pela aproximação de textos, cujo ritmo mental expressam, ou parecem expressar, uma influência na problemática, na estrutura e na marcha do pensamento, como fez Joaquín Iriarte na sua tese Kartesischer oder Sanchezischer Zweif el? Ein kritischer und philosophischer Vergleich zwischen dem,Kartesischen”Discours de la Méthode”und dem Sanchezischen”Quod nihil scitur », Bona, 1935.

Furta-se ao intento destas páginas introdutórias a análise minuciosa das correlações apontadas ou sugeridas por estes dois investigadores. Exageradas, como parecem na maior parte dos casos, ou plausíveis como é de admitir nalguns outros, embora todos os paralelos se movam somente no terreno da probabilidade, impõe-se apenas ao nosso intento a consideração da estrutura e teor da dúvida nos dois filósofos, por ser intrinsecamente mais elucidativa do que a mera correlação de palavras.


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