Os Opera Philosophica de Francisco Sanches

São quatro as conceções que Sanches critica: duas aristotélicas Ciência é a conformidade (habitus) de conhecimentos obtida por demonstração, e Saber é conhecer as coisas pelas respetivas causas; uma, platónica: Saber é recordar; e uma quarta, que propõe e que, aliás, é coerente com a epistemologia aristotélica: Ciência é o conhecimento perfeito do objeto. Sem as feições de uma dissertação escolar, o Quod nihil scitur conserva, não obstante, alguns vincos do escolasticismo, assim nos termos com que formula e refuta a epistemologia tradicional como no método da refutação, o qual consiste em isolar e contraditar separadamente os termos constitutivos de cada definição para pôr a nu a inanidade do conjunto.

A primeira definição que Sanches refuta exprimia-se pela fórmula: Scientia est habitus per demonstrationem acquisitus. Vulgar no ensino, do que dá exemplo Diogo de Sá, a refutação envolveu os fundamentos da conceção aristotélica da Ciência e a construção da teoria lógica do Organon. Os fundamentos da teoria da definição e da demonstração, isto é, do raciocínio de que o silogismo é tipo, constituem o alvo das objeções de Sanches, mas a pontaria não visou diretamente o Organon de Aristóteles mas os manuais que expunham a teoria lógica de harmonia com a tradição que mais proximamente radica nas Súmulas Lógicas de Pedro Hispano.

Na refutação, Sanches não se situou na essência nem no conjunto do que cada uma das definições significa. Atento, como cremos, ao método sugerido por Galeno e a que Acontio deu desenvolvimento (1558), decompôs o todo nas partes que o constituem e refutou cada uma de per si, por forma que o todo se mostrasse privado de fundamento. Habitus e demonstratio foram os elementos que separou na primeira definição.

No conceito de habitus, que traduzimos por conformidade, compreendeu a teoria dos predicamentos ou categorias (praedicamenta) e a dos cinco universais ou predicáveis (praedicabilia), tendo em vista diretamente a dialética dos manuais do princípio do século XVI, na essência teoria da linguagem expressa, e não propriamente a lição original do Das Categorias e da Isagoge de Porfírio; e no de demonstratio, compreendeu a teoria do silogismo, a ser ver «fútil, longa, difícil e nula».

No habitus, como na demonstratio, e de modo geral na Metafísica e demais livros aristotélicos, encontrava somente definições nominais, e não a expressão da ciência real; consequentemente, não hesitou em escrever que a teoria da demonstração era «um sonho de Aristóteles semelhante à República de Platão» e que com silogismos jamais se constituíra ciência alguma, antes, por causa deles, algumas se perderam e adulteraram (Qns., 9).

A definição de Ciência como habitus per demonstrationem acquisitus contém ainda um terceiro elemento: o que se adquire pelo habitus e dizem que é, ou pode vir a ser, «um agregado (congérie) de muitas conclusões». Como os anteriores elementos integrantes da definição, este não é menos inconsistente, porque a Ciência «não é outra coisa que uma visão interna», e em vez de se encontrar na congérie de conclusões, ela somente é possível em relação a uma só coisa — Vnius enim rei solum scientia esse potest (Qns., 10, 32-45; 11, 1-8).

A segunda definição de Ciência que Sanches refuta é a de Platão, no Menon: saber é recordar.

Na crítica da complexa teoria da reminiscência, Sanches passou à margem do essencial, refutando-a à luz do sensismo, da realidade do esquecimento e dos recursos da dialética. Prometeu ocupar-se no De anima das conceções psicológicas de Platão, mas no Quod nihil scitur acentuou principalmente que não podia ser exata uma conceção cujo autor não testemunhava ter «visto» a sua alma na posse de todas as verdades antes de entrar no corpo, e cuja estrutura continha o seguinte dilema: ou a alma antes de entrar no corpo possuía o Saber por infusão de outra alma, esta, de outra, e assim sucessivamente in infinitum, ou possuía-o por si mesma, e neste caso é porque se havia esquecido e, portanto, o saber adquirido não podia ser recordação (Qns., 12-13).

A terceira definição que Sanches a seguir considera é a de Aristóteles no I da Metafísica e noutros escritos: Saber é conhecer pelas causas.

Se no fundo da teoria platónica da reminiscência se pressente a condicionalidade a priori do conhecimento, na definição aristotélica exprime-se claramente a ideia de que conhecer pela causa é conhecer pelo geral e razão de ser, e portanto pelo conceito e pela essência, e tanto uma como outra definição implicavam «realidades”que transcendiam o sensismo, elementar e ingénuo, sobre o qual Sanches radicava a sua conceção da Ciência. Por isso, argumenta contra a definição aristotélica insistindo, de acordo com Enesidemo, em que a explicação pelas causas, total ou singularmente consideradas, implica a sucessão da causalidade in infinitum e que o recurso aos «primeiros princípios» não é legítimo nem satisfatório (Qns., 13-15).

A quarta e última definição é do próprio Sanches, que a exprime nesta forma: Ciência é o conhecimento perfeito do objeto.

O processo crítico a que Sanches submete esta definição, coerente com o sentir comum, ocupa a maior parte das páginas do Quod nihil sritur. Na refutação, confluem os recursos dialéticos originais de Sanches e os argumentos da tradição cética, repensados e dispostos pela ordem que considerou mais adequada à marcha da refutação.

Fiel ao método que adotara, e que consiste em refutar uma proposição partindo das partes para o conjunto, Sanches decompôs esta definição nos seguintes elementos constituintes: o objeto (coisa a conhecer), o ato de conhecer, e a perfeição, isto é, a capacitação da mente cognoscente. Com ser diferente, esta repartição recorda a de Sexto Empírico, que distribuiu os dez «tropos”ou razões da dúvida, em três grupos, relativos respetivamente a quem julga, à coisa que se julga e à relação de quem julga com a coisa que se julga.

Considerada sob o ponto de vista do objeto, a infinita variedade numérica das coisas, quer individualmente, quer nas espécies, torna impossível o conhecimento perfeito, ou por outras palavras, a ciência relativa à natureza das coisas, em virtude do conhecimento de uma implicar o conhecimento de todas.

Este é o argumento, por assim dizer capital, de mais extenso desenvolvimento e de mais estreita relação com a temática filosófica coetânea. Sanches aditou-lhe, porém, outros, colhidos no arsenal do ceticismo grego que Sexto Empírico transmitira, designadamente: a falta de correspondência entre as coisas e as palavras que as designam, em virtude da arbitrariedade e mutabilidade das palavras e do respetivo sentido; a grandeza excessiva de uns seres e a pequenez exígua de outros; a diversidade de efeitos produzidos por causas idênticas e a identidade de efeitos produzidos por causas diferentes; a duração, geração das coisas e sua multíplice forma, figura, quantidade, ações e posição no espaço e no tempo. Consequentemente, tira a ilação de que somente pode haver certeza nos dados imediatos da perceção sensível, para além dos quais só existe confusão e nada é certo, porque a experiência sensível somente dá impressões particulares, limitadas, de «acidentes» e não de «essências».


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