Excurso: Francisco Sanches versus Giordano Bruno?

Uma conjetura acerca do Quod nihil scitur

A fortuna do Quod nihil scitur (1581), de Francisco Sanches (1551?-1623), está em grande parte associada à promessa audaciosa do título. Se outro tivesse sido, é bem possível que as suas páginas não houvessem alcançado tanta nomeada nem atraído com tanta insistência a atenção dos estudiosos dos desacertos da razão e a suspicácia dos contraditores da «libertinagem intelectual” e do «espírito forte». A história do pensamento ensina que a temática da dúvida ocupou na última quadra do século XVI uma posição proeminente, mas é incontestável que Francisco Sanches deu ao famoso livro um título que aguça a curiosidade pela audácia e vastidão das promessas, incomparavelmente mais largas do que as que anunciavam o De docta ignorantia, de Nicolau de Cusa, o De incertitudine et vanitate scientiarum, de Cornélio Agripa, e os De censura veri e De instrumento probabilitatis, de Luis Vives. A simples leitura, contudo, logo adverte de que promete mais do que realmente dá, porque anunciando o elenco das razões justificativas da dúvida radical e universal, sem distinguir a esfera noética e explicativa da zona da credulidade e da conduta, inculcando, por consequência, a impossibilidade do saber em geral, assim teórico como prático, ocupa-se somente separada e analiticamente, das seguintes definições da Ciência: habitus per demonstrationem acquisitus; saber constituído pelo conhecimento das causas; conhecimento pela reminiscência e conhecimento perfeito do objeto (rei perfecta cognitio).

Sanches refuta separadamente cada uma destas definições, sem discriminar ostensivamente a conceção realista da nominalista; por isso, não falta quem tome à letra o ceticismo radical e universal anunciado no título, Quod nihil scitur. O exame da estrutura dos raciocínios, corroborado, aliás, por algumas afirmações expressas, mostra, porém, que Sanches teve em vista a refutação das conceções da Ciência que assentam na existência de realidades ideais independentes da mente que as pensa. O seu escopo consistiu em pôr a nu a vacuidade dos universais e das explicações neles fundadas os átomos de Epicuro, as ideias de Platão, os números de Pitágoras, os universais e as teorias do intelecto de Aristóteles —, e, de modo geral, de qualquer substanciação de conceitos. Insistiu, por isso, na vacuidade do formalismo lógico-escolástico e na inconsistência do conteúdo do saber que se constitua a partir de generalizações e de essências.

É manifesto que na crítica de Sanches subjaz a argumentação de Sexto Empírico, designadamente contra o realismo dos géneros e das espécies (Hyp. Pyr., II, v. 20), mas não é menos claro que o autor do Quod nihil scitur combate o realismo dos universais por não ter em conta a diversidade dos indivíduos, a seu ver a única realidade patente e certa.

O nominalismo apresenta-se, assim, como a conceção em que se funda o Quod nihil scitur, o qual, em rigor, se não propôs demonstrar a impossibilidade radical do conhecimento científico nem a ilegitimidade de todo e qualquer juízo predicativo e afirmativo de realidades extramentais. Como expressamente declara, Sanches admitiu a legitimidade da certeza per experimentum et judicium, isto é, do conhecimento nos limites da experiência concreta; consequentemente, a sua dúvida não é radical nem universal, recaindo propriamente sobre a inconsistência do conceito da verdade como saber essencial, a partir do qual se alcancem outras verdades por via dedutiva ou combinatória por isso, não concluiu pela suspensão do juízo e rematou o requisitório contra as quatro definições de Ciência, que acima indicamos, anunciando na derradeira página do Quod nihil scitur o propósito de se ocupar da fundamentação da ciência firme e fácil, sem arquétipos e sem universais nem predicamentos: Mihi namque in animo est firmam, et facilem quantum possim scientiam fundare: non vero chimaeris et fictionibus a rei veritate alienis, quaeque ad ostendendum solum scribentis ingenii subtilitatem, non ad docendas res comparatae sunt, plenam.

Na estrutura da argumentação, especialmente na que ataca a definição da ciência como rei perfecta cognitio, encontram-se os «tropos”de Enesidemo e os argumentos de Agripa. Sanches cita a propósito somente o artigo de Diógenes Laércio sobre Pirro, mas é fora de dúvida que o Quod nihil scitur se prende por várias raízes às Hipotiposes Pirrónicas e ao Contra os Matemáticos de Sexto Empírico. Sem o ceticismo da Nova Academia não é explicável a estruturação do Quod nihil scitur, cuja argumentação e cujo ritmo de pensamento se vinculam à tradução das Hipotiposes de Henri Estienne (Sextus Empiricus Pyrrhoniarum hypotyposeon libri III... Genève, 1562) e à do Contra os Matemáticos de Gentian Hervet, (Sextus Empiricus Adversus Mathematicos..., Paris, 1569, juntamente com a ed. anterior).

O próprio discorrer, no Quod nihil scitur, vivo, ágil, perguntão e polemizante, sofreu a influência de Sexto Empírico e em especial do estilo de Henri Estienne no prefácio da sua tradução, mas, como é óbvio, não se explica somente pela influição de algumas leituras nem tão-pouco pelo desenvolvimento intrínseco de uma conceção fundamental e englobante.

O Quod nihil scitur, com efeito, não tem a frieza das composições escolares nem coloca o leitor em posição espetacular e distante. A crítica à possibilidade da perfecta scientia, isto é, de um saber de causas ou de universais que vá além da notitia sensibilis, tem a vivacidade de quem se sente que estão em jogo interesses vitais, desenvolvendo-se quase sempre a argumentação com o calor de uma animosidade que logra esbater a inegável presença das raízes livrescas dos diversos argumentos. Rememorando sem apreço a sua experiência de escolar gimnasial, Sanches deixou transparecer a intenção pedagógica de libertar a juventude do ensino sumulista e do dogmatismo. Viu com clareza a necessidade de uma conceção da Ciência «firme e fácil”e de uma metodologia em que a realidade não fosse construída pela combinatória de termos ou de conceitos. Sob este ponto de vista, o Quod nihil scitur pode considerar-se uma tentativa para desvincular o pensamento científico de sistemas dogmáticos inconsistentes e praticamente infecundos, de sorte que as razões da sua dúvida se não teriam dirigido propriamente contra o saber científico mas contra a legitimidade da Metafísica entendida como ciência fundamental e independente ou como ideografia a que se subordinasse a experiência sensível. A esta luz, o título exato do seu livro não é o conciso Quod nihil scitur da primeira edição de 1581, mas o mais explícito da segunda edição, de 1618, que aliás não se sabe se é da responsabilidade de Sanches, se do editor: De multum nobili et prima universali scientia quod nihil scitur.

A mente de Francisco Sanches, cujas ideias se polarizam em torno da conceção sensista do conhecimento, coexistia, porém, com um espírito constitutivamente polemizante. Daí, a dupla face dos seus escritos filosóficos: de um lado, a sucessão de pensamentos que aspiram ao assentimento racional, de outro, a vivacidade de críticas impregnadas de subjetividade.

Com efeito, todos os escritos filosóficos de Sanches foram pensados sob a forma mentis da polémica, apresentando até o Carmen de cometa anni MDLXXVII (Lyon, 1578) e o De diuinatione per somnum ad Aristotelem ostensivo sentido refutativo —, aquele, contra o Discours sur ce que menace devoir advenir la comete apparue à Lyon le 12 de ce mois de Novembre 1577, laquelle se voit encores à present (Paris, 1577), de Francisco Junctino, e este, contra a demonomância admitida por Jerónimo Cardano.


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