Excurso: Francisco Sanches versus Giordano Bruno?

Significa este facto que os escritos filosóficos de Sanches se apresentam em conexão, por um lado, com a conceção fundamental do sensismo corno origem e limite do conhecimento e, por outro, com circunstâncias próprias de cada um e que mais ou menos afetaram a personalidade do filósofo. Sob o primeiro aspeto, têm de comum a epistemologia em que radicam; sob o segundo, são independentes, pelas motivações particulares que os suscitaram.

O Quod nihil scitur ilustra, como nenhum outro livro, esta dupla situação: filosoficamente, é a refutação do dogmatismo e da epistemologia que explica o conhecimento mediante essências e universais meramente inteligíveis, e literariamente, o estilo tem a vibração de quem polemiza contra algo ou contra alguém que fere interesses, aspirações ou ideias. Na dedicatória ao ignorado Didacus a Castro apresenta-se como combatente do error falsitatem expugnaturus miles, o que é paradoxal, para não dizer inconciliável com o Quod nihil scitur do título, e conduz a pensar-se que escreveu as páginas deste livro sob o impulso de um sentimento pessoal.

A análise mostra com clareza a presença da argumentação de Enesidemo e de Agripa assim como o vinco do estilo de Henri Estienne no prefácio da sua tradução das Hipotiposes, mas a desenvoltura e o nervosismo da prosa de Sanches são claro testemunho de que ele sentiu apaixonadamente a repulsa das doutrinas que refuta, especialmente a conceção da possibilidade da Ciência se constituir a partir de essências mediante a combinação de conceitos e de termos. Sendo assim, o Quod nihil scitur não nasceu a partir da impressão causada pelo conhecimento da argumentação da Nova Academia contra o dogmatismo, mas da repulsa, como que pessoal, de uma conceção coetânea do dogmatismo e do saber dedutivo que brigava com o empirismo da sua formação clínica e se estruturou e nutriu com argumentação colhida em Diógenes Laércio e em Sexto Empírico.

O Quod nihil scitur não é, pois, um livro de imparcial indagação e de composição erudita, com a frieza das páginas estritamente intelectuais, dando-se até o caso da expressão das ideias ser destoante do conjunto da obra de Francisco Sanches. Pulsa no seu estilo um nervosismo que não é compreensível sem a vibração do sentimento. Comparado aos demais escritos, assim filosóficos como médicos, é-se irresistivelmente levado a pensar que, ao escrevê-lo, a pena de Francisco Sanches empenha a própria personalidade, a ponto de alguns períodos parecerem ter em vista um adversário que se não nomeia e cujas conceções se contestam.

Da escolaridade gimnasial conservou Sanches a impressão de que fora tempo perdido com inúteis argúcias em exercícios de disputa silogística, quando mais valia tê-lo aplicado «em conhecer qualquer causa natural»

Por isso, o Quod nihil scitur combate, a um tempo, conceções e teorias intrinsecamente erróneas e pedagogicamente nocivas. Ora, a vibração da combatividade e o objetivo de libertar a juventude de um mau ensino somente são compreensíveis pelo apelo vibrante da atualidade. Sanches convencera-se, mormente depois da meditação das Hipotiposes Pirrónicas de Enesidemo, da falta de fundamento da conceção da Ciência entendida como saber acerca da essência das coisas, e, portanto, da conceção da Metafísica como ciência dos princípios e do ser enquanto ser e da sem-razão da precedência e primazia do conhecimento do universal em relação ao conhecimento direto do singular concreto. Consequentemente, a repulsa do saber quiditativo conduziu-o coerentemente a admitir que é um só e o mesmo o objeto do entendimento e da perceção sensível e a prefigurar uma teoria e urna metodologia da Ciência pelas quais a realidade não fosse construída dedutivamente por um sistema de simples relações entre conceitos.

Esta conceção, que subjaz nas páginas do Quod nihil scitur, é sugerida e não exposta. Sanches estabelece-a pela impossibilidade de se reconstituir a realidade mediante conceitos, mostrando que é intrinsecamente errónea e pedagogicamente nociva —, o que é de notar em quem não exercia o magistério das Artes e tinha a amarga recordação do malogro da candidatura a lente de Medicina de Montpellier (1574).

É óbvio que o Quod nihil scitur enfileira na série de escritos adversos à silogística escolástica e à formação verbalista e disputante que ela gera, pondo a nu a esterilidade do ergotismo dos sumulistas, que trocavam o saber das ciências reales pelo virtuosismo das artes sermocinales. Bastaria para o patentear a refutação à conceção da Ciência como habitus per demonstrationem acquisitus e a alusão despi-ciente aos uolumina suppositionum, indissolubilium, exponibilium, obligantionum, reflexionum, modalium (p. 47), ou sejam alguns dos tratados das matérias lógicas das Summulae e dos que os terministas lhes acrescentaram. Se isto é óbvio, não é menos claro o sentido atual, de hic et nunc, das críticas, das invetivas e das reflexões, bem expresso nos largos períodos que dedicou à variedade dos maus mestres e à fenomenologia do mau ensino, oral e escrito, com o desenvolvimento de particularidades que denotam o ataque e o desagravo. Daí, o pensar-se que Sanches teve em vista mostrar que a filosofia teórica que por então se ensinava em Toulouse era verbalista e sem fundamento —, o que, sob o ponto de vista pessoal, constituía uma maneira de fazer salientar a sua competência e de se candidatar ao magistério das Artes, que efetivamente veio a exercer na Universidade tolosana tempos depois, em 1585, «par postulatives», isto é, com dispensa de concurso por provas públicas.

 

Documento algum confirma ou infirma esta conjetura, cujo aprofundamento conduz à hipótese do Quod nihil scitur ter como raiz próxima e alvo direto o ensino lógico da Faculdade de Artes de Toulouse e, em especial, o mestre que então o ministrava, ou seja Giordano Bruno (1548 - 17-11, 1600), fervoroso sequaz e expositor dos princípios basilares da Ars de Raimundo Lulo. A força da hipótese é essencialmente suasória, nutrindo-se da razão suficiente e explicativa que certos factos biográficos e histórico-filosóficos parece manterem entre si. Atentemos nuns e noutros.

Francisco Sanches estabeleceu-se em Toulouse, onde a sua existência é documentada, em Março de 1575, após o insucesso do seu concurso (Agosto de 1574) à cátedra da Faculdade de Medicina de Montpellier, vaga pelo falecimento de Francisco de Feynes. O malogro não lhe quebrantou a vontade de se dedicar ao magistério superior, e até é legítimo supor que a preferência pela capital do Languedoc tivesse obedecido, a par de outros motivos, à possibilidade de alcançar o lugar que circunstâncias mal conhecidas lhe vedaram em Montpellier. Sanches não pôs de banda o estudo da Medicina, mas é fora de dúvida que se aplicou principalmente ao estudo de problemas gerais da filosofia da Natureza e do conhecimento, como testemunham a publicação do Carmen de cometa, em 1578, e a do Quod scitur, em 1581, e o anúncio para o prelo do Examen rerum.

Quatro anos depois do estabelecimento de Sanches, chegava a Toulouse em fins de 1579 Giordano Bruno. O famoso filósofo, tão fogoso e audaz no ideal quanto instável e errante no proceder, que aos quinze ou dezasseis anos vestira em Nápoles o hábito dominicano (1563-1564) e aos vinte e oito o despiria em Roma (1576), havia-se instalado neste mesmo ano de 1579 em Genebra, onde dera público testemunho de adesão ao Calvinismo e quatro ou cinco meses volvidos sobre a chegada fora condenado por heterodoxo por haver escrito uma invetiva contra o ensino de António de La Faye, mestre de Filosofia na Académie genebrina, «cottans 20 erreurs d'iceluy en une de ses leçons».          


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