Excurso: Francisco Sanches versus Giordano Bruno?

Não podia ter encontrado mais pronto acolhimento, decerto por ninguém, na inquisitorial Roma do Garona, por então, no dizer de Victor Cousin, «a cidade católica por excelência», suspeitar, sequer ao de leve, das apostarias e embustes do recém-vindo. Segundo as próprias declarações no Santo Ofício, em Veneza (30-V-1592), Bruno ganhou o sustento nos primeiros seis meses dando lições particulares sobre a teórica da Esfera e sobre Filosofia, cujo ensino lhe havia proporcionado até então como que o ganha-pão quotidiano. Entretanto, seis meses depois, vagou na Universidade o leitorado ordinário de Filosofia, a cujo concurso foi admitido e aprovado, depois de se doutorar em Artes.      

Durante dois anos leciona e escreve, com a atividade febril que singulariza o seu génio impulsivo e arrebatado. A perda dos registos universitários priva-nos do conhecimento da sua atividade docente, da qual se sabe somente o que ele próprio declarou no processo inquisitorial: ter concorrido à cadeira de leitor ordinário de Filosofia, para o que se doutorou previamente em Artes, ter adotado como texto o De anima, de Aristóteles, e ter feito «outras lições de Filosofia».

Fiel ao hábito de condensar em livro o assunto das lições, associando simultaneamente a atividade do preletor e do escritor, Bruno redigiu por estes anos (1579-1581) um De anima, que se considera perdido; não obstante pode conjeturar-se com bastante verosimilhança que nele se ocuparia das questões acerca da natureza e da extensão do conceito de alma, da sua materialidade ou imaterialidade, unidade ou pluralidade.

O mesmo se pode dizer relativamente ao assunto das «outras lições de Filosofia», por também ser crível que versassem a Ars combinatoria e a mnemónica a que Bruno se entregou com ardorosa convicção e constituíram o tema predominante da sua atividade literária nestes anos de 1579-1583. Com exceção do De anima (1578-1581), do Dei predicamenti di Dio (1581-1582), do Purgatorio dell'Inferno (1582-1583), que ficaram inéditas, e da comédia Il candelaio, impressa em 1582, os escritos que Bruno deu ao prelo em 1582 e 1583, após a saída de Toulouse, indicam com evidência os temas que o preocuparam e ocuparam: De umbris idearum implicantibus artem quaerendi, inueniendi, iudicandi, ordinandi et applicandi. Ad internam scripturam et non vulgares per memoriam operationes explicatis, Paris, 1582. Tem junto: Ars memoriae; Cantus Circaeus, ad eam memoriae praxim ordinatus quam ipse judiciariam appellat, Paris, 1582; De compendiosa architectura et complemento artis Lullii, Paris, 1582; Explicatio triginta sigillorum ad omnium scientiarum et artium inuentionem, dispositionem et memoriam. Quibus adiectus est Sigillus sigillorum ad omnes animi operationes comparandas et earundem rationes haberuclas maxime conducens. Et non temere ars artium nuncupatur. Hic enim facile inueniens quidquid per logicam, metaphysicam, cabalam, naturalem magiam, artes magnas atque breves theorice inquiritur (S. 1. n. d., mas de 1583, em Londres (?)), precedida da Recens et completa Ars reminiscendi et in phantastico campo exarandi: ad plurima in triginta sigillis inquirendi, disponendi atque retinendi implicatas nouas rationes et artes introductorias.

Com o Clauis Magna, porventura começado a redigir em Toulouse (1579-1581?) e cujo texto se considera perdido, todos estes escritos remontam a conceções de Raimundo Lulo, expostas notadamente na Ars generalis ultima da qual fez um resumo, que na edição de Paris, 1578, tem o expressivo título de Ars breuis quae est ad omnes scientias pouco et breuiter tempore assequendas introductorium et breuis uia  e no Introductorium magnae artis generalis (Lyon, 1515).

Ao nosso objeto importa particularmente o desiderato, indicado no prólogo da Ars generalis ultima, da constituição de uma ciência universal, que compreenda e harmonize todas as ciências particulares e cujos princípios permitam alcançar conhecimentos no domínio da realidade. No polo oposto ao sensismo e ao nominalismo de Sanches, que expressamente privou de existência os Átomos de Demócrito, as Ideias de Platão, os Números de Pitágoras e os Universais de Aristóteles, Bruno fundou esta conceção num sincretismo, inspirado, porventura, como o método em Raimundo Lulo e de que é expressão clara o seguinte passo do prólogo de De umbris idearum (1582): Neminem quippe eorum qui ad rerum contemplationem proprio innixi ingenio, aliquid artificiose metodiceque sunt moliti, non magnificamus. Non abolemos Pythagorico rum mysteria: non parvificimus platonicorum lides: et quatenus reale sunt nacta fundamentum Peripateticorum ratiocinia non despicimus.

Daqui, dentre outras consequências, a identificação dos principia essendi e dos principia cognoscendi, a qual nutriu a robusta e ativa confiança de Bruno no poder esclarecedor da razão, in ogni campo e contro ogni ostacolo, di autorità tradizionale o di riaturale ottuzità, di cocciuto torpore monas tico o di sottile disciplina umanistica, di dogmatica fissità teologica o d'incolta rozzezza popolare. Sem ela, Bruno não teria a significação histórica que o singulariza, na qual «la ratio, la fides, e il mysterium sono come le dimensioni inseparabili d'un mondo spirituale che non puà privarsi d'alcuna di esse per non impoverirse e inaridirsi e precludersi vastissimi campi di recerca e di azione riformatrice», e se é discutível que a primeira fase do seu pensamento haja sido platónica, luliana ou sincrética, temos por certo que ela assentou na conceção a que Raimundo Lulo deu clara expressão, designadamente no período inicial do Introductorium magnae artis generalis: Quoniam omnis scientia est de uniuersalibus ut per uniuersalia sciamus ad particularia descendere.

Convicto deste pressuposto metafísico-metodológico, Bruno aplicou-se com reiterada insistência ao ensino e à exposição de um método aplicável a todos os ramos do saber, graças ao qual se simplificaria o trabalho intelectual, reduzindo-o a uma combinatória de conceitos e se obteriam conhecimentos no domínio das ciências particulares. A Clauis Magna, que é o primeiro escrito luliano de Bruno e cuja redação, como dissemos, iniciou, se é que não concluiu, em Toulouse, ocupava-se  de inuentione et judicio scientiarum et de arcaria retentione et fixione, podendo dizer-se com Berti que Bruno «si proponeva di aprire con questa gran chiave le porte che mettono nei penetrali Lulliani, di abilitare i dotti e gli indotti a sbrogliare le cose  intrincate, a distinguere le confuse e dichiarare le occulte, dilucidare le oscure ».

Após dois anos, pouco mais ou menos, Bruno viu-se compelido a sair de Toulouse, indo para Paris, onde, como declarou no processo de Veneza, se lhe proporcionou o ensejo de «legger una lezione straordinária, per farsi conoscere e far saggio di mé» e, devido à fama que alcançara com a ars mnemonica, despertou a curiosidade de Henrique III, a quem dedicou o De umbris idearum e que o nomeou «lettor straordinario e provisionato». Bruno fora convidado «à pigliar una lettione ordinaria”mas recusara-a «perché li lettori publici di essa cittá (Paris) vanno ordinariamente a Messa et alii altri divini offitii, ed io ho sempre fugito questo sapendo che ero scommunicato per esser uscito dalla Religione et haver deposto l'habito, che se bene in Tolosa hebbi quella lettione ordinaria, non ero perà obligato à questo come sarei stato in detta città de Paris quando havesse accettata la detta lettione ordinaria”(Sessão de 30-V-1592).

Esta declaração sugere que os motivos religiosos não foram alheios à saída de Toulouse, visto Bruno não assistir a missas e outros ofícios religiosos: io ho sempre fugito questo sapendo che ero scommunicato per esser uscito dalla Religione et haver deposto l'habito. Ninguém, por certo, teve conhecimento da apostasia de Bruno, mormente os seus antigos irmãos de hábito do convento que S. Domingos fundara e onde se guardavam e guardam as relíquias de S. Tomás de Aquino; no entanto, a sua ausência a serviços religiosos testemunhava uma indiferença que se tornaria suspeita. Não sem razão escreveu Berti  que muitos atos da vida de Bruno em Toulouse se realizaram «no silêncio e no mistério», e até pode conjeturar-se que procurou afastar as suspeições confessando-se a um padre jesuíta, o que não conseguiu por ser apóstata.


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