Excurso: Francisco Sanches versus Giordano Bruno?

Não obstante a plausibilidade destas conjeturas, os factos e testemunhos estabelecem que a saída de Toulouse lhe foi imposta pela hostilidade do ambiente universitário.

Com efeito, Bruno declarou em 1592, no processo de Veneza, que abandonara Toulouse «per le guerre civili», mas em 1587, na dedicatória do De lampade combinatoria lulliana ao Senado da Universidade de Wittemberg, havia atribuído a instabilidade da sua vida universitária, forçado a abandonar sucessivamente as Universidades de Toulouse, de Paris e de Oxford, à agitação escolar provocada pelos seus adversários: «... iam quamulis in ea vestro proponi videretis auditorio, quae licet itidem in regiis Tolosae, Parisiorum, et Oxoniae auditoriís obstrepuerint prius... non (pro more unius et alterius cuiusdam loci) nasum non intorsistis, sannas exacuistis, buccae non sunt inflatae, pulpita non strepuerunt, in me non est scholasticus furor excitatus».

Ne pena de Bruno, a expressão furor scholasticus é sem dúvida um eufemismo disfarçando uma realidade que nos é desconhecida com exatidão. Berti pensou que a agitação se filiaria nas opiniões astronómicas de Bruno, «especialmente na sua doutrina acerca da pluralidade dos mundos e das condições e qualidade dos seus habitantes».

A conjetura não parece consistente, afigurando-se mais razoável a explicação que tenha em conta, a um tempo, o temperamento irrequieto de Bruno, tão fértil em desatinos, incompatibilidades e conflitos, e o arrojo das suas conceções lógico-metafísicas. Por onde passou, Bruno deixou quase sempre, senão sempre, o rumor do desacordo e da irritação. O furor scholasticus de Toulouse não foi, de modo algum, caso único na agitada vida universitária de Bruno, e se é certo que se desconhecem os desatinos, que possivelmente o excitaram, temos por muito verosímil que a ars mnemonica que ele propugnava e ensinava deu azo a incompreensões e hostilidades. A fonte da informação procede do próprio Bruno, que no preâmbulo do De umbris idearum, dedicado a Henrique III, de França, alude a vários mestres e doutores hostis à arte mnemónica e às sombras das ideias, ou seja, a conceção platónico1uliana em que fundava a arte.

A alusão reporta-se a pessoas e a acontecimentos reais, que não podem identificar-se e esclarecer-se pela circunstância de não ser conhecida outra fonte de informação e de Bruno se lhes referir vagamente e com pseudónimos. Na sua pena, molhada no fel e no desdém, estes adversários são assim designados: Doctor Bobus, Mestre Anthoc, Mestre Roccus, archimagister de Artes e de Medicina, Pharfacon, doutor em Direito Civil e Canónico e filósofo, Doutor Berling, Mestre Maines, Mestre Scoppet, médico de grande nomeada, Mestre Clyster, doutor em Medicina, Doutor Carpophorus, Mestre Arnophagus.

Todos estes mestres e doutores eram hostis à arte mnemónica e às conceções em que Bruno a fundava, não sendo arriscado conjeturar que neles se contariam mantenedores da tradição aristotélico-escolástica e cultores do pensamento antimetafísico e antiverbalista.

Berti não hesitou em escrever que estes adversários eram mestres na Sorbonne, porém é mais verosímil que Bruno tivesse tido em vista principalmente alguns mestres da Universidade de Toulouse. É que Bruno chegou a Paris em fins de 1581, onde logo deu ao prelo o De umbris idearum, que foi a primeira das obras que publicou em 1582.

Além disto, tudo indica, como já dissemos, que o De umbris expõe, condensa ou desenvolve lições feitas em 1580 ou em 1581 em Toulouse, e sendo assim torna-se mais crível que Bruno tivesse tido em vista mestres tolosanos.

Não se descobre o nome real oculto sob os pseudónimos dos adversários de Bruno, mas é de admitir que Francisco Sanches fosse um deles, designadamente o que designou de Clyster. O apodo parece sugerido por associação da profissão médica, relacionando-se, porventura, com o facto de Sanches ter sucedido em 1581 a Augier Ferrier como médico do Hôtel-Dieu, de Toulouse.

Berti estabeleceu uma correlação entre o Quod nihil scitur e certas doutrinas de Bruno ao escrever que «nel libro del Sanchez, che porta per titolo, che nulla si sa, trovansi mentovate talune questiOni, come quelle, della pluralità dei mondi, le quali si direbbero una reminiscenza dell'insegnamento del Bruno». Ao invés do erudito investigador, pensamos que a única relação possível entre os dois filósofos, em quaisquer períodos da sua existência e muito principalmente nos anos de 1579-1582, que são os que mais importa considerar, é a do contraste das respetivas conceções metafísicas e metodológicas.

Cronologicamente, com base nos escritos que deram a público, a expressão do pensamento de Bruno é posterior à de Sanches: este deu ao prelo em 1578 o Carmen de cometa e, em 1581, o Quod nihil scitur, e Bruno publicou os seus primeiros escritos filosóficos em 1582. Sem base textual, só conjeturalmente se podem estabelecer hipóteses, que têm de assentar, como é óbvio, nas condições doutrinais dos dois filósofos durante o tempo em que Bruno ensinou em Toulouse. Nestes limites, admitindo que os escritos dados por Bruno ao prelo em 1582, em Paris, condensam ou desenvolvem conceções que haviam constituído objeto de lições na Universidade de Toulouse, afigura-se muito verosímil que o Quod nihil scitur tivesse sido escrito, de modo geral, contra o realismo das ideias e a metodologia nele fundada, e, em particular, contra a conceção lógico-metafísica de Bruno de que é possível reconstruir o sistema da realidade natural, constituída por seres individuais e concretos, mediante a combinatória das relações entre conceitos.

Todos os escritos de Bruno, impressos em 1582, salvo a comédia Candetaio, se reportam a esta conceção fundamental, mas nenhum a exprime tão precisamente como o De umbris idearum. Esta obra, que foi o primeiro dos livros que Bruno deu ao prelo neste ano de 1582, divide-se em duas partes: o De umbris idearum, propriamente dito, e a Ars memoriae.

Na primeira, que é que mais importa ter em vista, parte da conceção platónica das ideias como realidades existentes por si, fora e independentes do intelecto, que delas apreende somente os revérberos ou sombras. Daí, o título da obra, cujo objeto consiste nas «sombras», ou seja o que é presente ao espírito como sinal da verdadeira realidade; mas porque a mente é apta a apreender a realidade das ideias, como entidade metafísica subsistente por si, como os olhos apreendem a realidade da luz, o exame das ideias conduz à conceção de que as coisas concretas são expressão de um todo intimamente ligado.

Daqui, a implicação de que não existe separação radical ou absoluta entre a realidade corpórea e a realidade espiritual, de sorte que o De umbris idearum procede da conceção monista da unidade da Natureza, que Bruno desenvolverá mais tarde. Foi esta a sua intuição fundamental, que, por assim dizer, condensou nas seguintes linhas da dedicatória do Candelaio (1582) «alla Signora Morgana B»: Ricordatevi, Signora, di quel che credo che non bisogna insegnarvi: — Il tempo tutto toglie e tutto dá: ogni cosa si muta, nulla s'annichila; è un solo che non può mutarsi, un solo è eterno, e può perseverare eternamento uno, simile e medesmo, — con questa filosofia l'animo mio s'aggrandisse, e me si magnifica l’intelletto»

No De umbris, porém, como degrau da desenvolução desta intuição, deteve-se particularmente na consideração de que o todo implica que as ideias formem entre si uma cadeia, que é o próprio encadeamento das coisas e seres naturais, e cujo conhecimento permite descobrir o uno no múltiplo e o idêntico no diverso. Consequentemente, o método adequado ao conhecimento da cadeia e da sua retenção mnésica é o que seja condizente com a conexão que as ideias têm entre si, isto é, com a própria cadeia como expressão do sistema total e único do Universo.


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