Daqui, a legitimidade de duas artes: a combinatória e a mnemónica, ou seja, respetivamente, a obtenção de conhecimentos mediante a combinação dos elementos fundamentais do pensamento (sujeitos e predicados) e a sua conservação na memória mediante associações ou conexões de ideias.
Mal conhecidas, estas conceções suscitaram logo censuras e animadversões, como o próprio Giordano Bruno confessou na dedicatória do Candelaio: «questo Candelaio che da me si parte, la quale in questo paese, ove mi trovo, [França], potrà chiarir alquanto certe Ombre dell'idee, de quali in vero spaventano le bestie e, come fussero diavoli danteschi, fan rimaner gli asini lungi a dietro».
Soam a desforra estas palavras, alusivas não sabemos a quem; no entanto, dir-se-ia que o Quod nihil scitur não foi alheio à refutação dos fundamentos do De umbris idearam, ao começar logicamente por contestar o pressuposto inicial da ars combinatoria como a entendiam Lulo e Giordano Bruno, ou seja, a estabilidade de sentido e o valor intrínseco das palavras. É como que o ponto de partida do desenvolvimento do objeto do Quod nihil scitur, que essencialmente consiste na refutação da legitimidade da Metafísica como «ciência universal”e fundamental, e, de modo geral, de toda a conceção da Ciência como saber assente em generalidades a partir das quais se possam alcançar conhecimentos exatos no domínio da realidade. O nominalismo empirista é a posição epistemológica de Sanches, que, em rigor, o não fundamentou diretamente, mas indiretamente, pela refutação do realismo das ideias gerais, designadamente na expressão de que pode tomar-se por paradigma o início do Introductorium magnae artis generalis (Lyon, 1515), de Raimundo Lulo: Quoniam omnis scientia est de universalibus ut per uniuersalia sciamus ad particularia descendere.
Ao escrevê-lo, Sanches teve, sem dúvida, presente a experiência da sua escolaridade discente, ou seja a esterilidade da metafísica substancialista, a necessidade de uma teoria do Saber coerente com o teor dos juízos que nutrem a ciência e a prática da Medicina, e o aparato dos argumentos de Sexto Empírico, a que recorreu largamente mediante a tradução latina das Hipotiposes Pirrónicas feita por Henri Estienne (1562) e a do Contra os Matemáticos, de Gentien Hervet (1569).
São indubitáveis estas motivações e fontes do Quod nihil scitur, mas o nervosismo do estilo desta obra, que se não compagina com o das demais obras filosóficas de Sanches, conduz irresistivelmente à suspeição de que a pena de Sanches se moveu também por impulsos de ordem pessoal e recriminatória. Daí a pergunta: ao dar a público o Quod nihil scitur teve Sanches em mira a sua entrada para o magistério da Faculdade de Artes de Toulouse, opondo o seu pensamento ao que nutria o ensino de Giordano Bruno nesta Faculdade?
A resposta pertence ao domínio da conjetura. Pelo que temos dito, a correlação é doutrinalmente verosímil, parecendo que alguns factos confirmam a verosimilhança, designadamente a circunstância de Giordano Bruno ter sido obrigado a sair de Toulouse no próprio ano da publicação do Quod nihil scitur, pela hostilidade do ambiente universitário, e a de Sanches ter entrado na Faculdade de Artes como regente, com dispensa de provas, em 1585, segundo a cronologia estabelecida por Cazac.
Urna objeção, no entanto, se levanta, com aspeto decisivo e terminante, contra esta conjetura: a cronologia do Quod nihil scitur.
A obra saiu a público em 1581, em Lyon, na oficina de António Gryphe, ignorando-se quando começou e terminou a impressão. No que toca à redação, pelo contrário, o desconhecimento provém, não da carência de dados, mas do excesso e da respetiva desarmonia.
É que os dizeres de Sanches a este respeito não são concordantes. Na dedicatória a Diogo (Jacobus) de Castro declara que a obra sai a público antes do tempo devido, como que setemesinha, porque, seguindo o conselho de Horácio, guardara o manuscrito na escrivaninha com o propósito de o dar ao prelo após nove anos sobre a redação. Antecipara, porém, a resolução, volvidos sete anos, porque encontrara as laudas do manuscrito tão roídas da traça, que, se levasse a cabo o conselho, ao fim dos nove anos teria de as dar ao «fogo”em vez de as dar à «luz».
Trata-se, evidentemente, de uma razão especiosa, porque, se o que havia escrito lhe não agradasse, é óbvio que copiaria e refundiria o manuscrito tantas vezes quantas as bastantes para se lhe apaziguar a consciência intelectual. No fundo, Sanches procurou justificar perante o público, e talvez também perante o amigo, cuja identificação se ignora, a urgência com que dava a obra ao prelo; por isso, à motivação material, relativa ao estado do manuscrito, acrescentou a seguir uma razão de índole pessoal, coerente com a pressa que o levava a dar a obra ao prelo sem mais reflexão sobre o assunto.
É que concebera e se propunha dar ao público outras obras, das quais o Quod nihil scitur era intróito ou preliminar, as quais não só não deu a público como parece não ter chegado a redigir, salvo o Examen rerum. Consequentemente, não devia ocupar-se, como Sísifo, em rolar constantemente a mesma pedra, tanto mais que a aplicação porfiada a uma só coisa não raro deforma o que primeiramente se elaborou. Por isso, publicava o manuscrito tal qual lhe saíra das mãos, apresentando-se como combatente da verdade — falsitatem expugnaturus miles.
Não indicou Sanches o próprio ano da redação, de sorte que se tornam conjeturais os limites do período de sete anos em que diz ter deixado na gaveta o manuscrito do Quod nihil scitur.
À primeira vista, parece que o ano da publicação, que foi o de 1581, seria o limite final, e por consequência o manuscrito foi redigido, ou estava concluído, em 1574. Acontece, porém, que Sanches datou de 1576 o prefácio ao leitor do Quod nihil scitur, surgindo, portanto, a dúvida sobre se este ano se refere apenas à data do prefácio ou à de todo o manuscrito, como é normal nas datas que se apõem a preâmbulos e advertências prévias.
Apresenta-se, assim, incerto o ano da redação, e se se considerarem certos factos é-se levado a crer que Sanches não podia ter redigido o Quod nihil scitur em qualquer dos anos indicados.
É que havendo nascido em 1551, como é mais verosímil (e não em 1550), tinha em 1574 e em 1576, respetivamente, 23 e 25 anos, idades juvenis para a maturidade de pensamento que o Quod nihil scitur pressupõe. Demais, em 1574, as exigências da preparação para os graus de licenciado (29 de Abril), de doutor (13 de Julho) e de concorrente (Agosto) a professor ordinário da Faculdade de Medicina da Universidade de Montpellier não lhe deixariam tempo livre nem disposição para a reflexão filosófica. Abandonando Montpellier, após a injustiça da sua preterição no concurso à Faculdade de Medicina, devida, ao que parece, a motivos confessionais, dá-se como certo, após Cazac, que Sanches já residia em Toulouse em Março de 1575. Documentalmente, nada se sabe de concreto acerca da biografia do filósofo nos primeiros tempos da sua instalação na cidade do Garona, mas não é crível que se tivesse ocupado com a redação do Quod nihil scitur. Podia ter pensado no assunto, como médico «metódico”oposto à atitude dos médicos «logicoi», mas não parece que se tivesse aplicado, propriamente, à respetiva redação.
É que o Quod nihil scitur dá a impressão franca de ter sido escrito como que de um jato. Sanches possuiu, sem dúvida, grande facilidade e prontidão no escrever. Sem a facilidade, não é explicável a existência da sua obra volumosa e variada; e sem a prontidão, a rapidez com que concebeu, redigiu e deu a público em 1578 o Carmen de cometa, suscitado pela publicação em fins de 1577 do Discours sur ce que menace devoir advenir la Comete, apparüe à Lyon le 12, de ce mois de Nouembre 1577, laquelle se voit encores à present. Par M. François Iunctini grand Astrologue et Mathematicien (Paris, 1577). Este facto mostra que Sanches não teve a constituição mental do erudito, cuja obra se constrói perseverante e paulatinamente, pelo desenvolvimento sucessivo de informes, de notas e juízos, e que, como escritor, a pena se lhe não emperrava na aplicação do termo próprio ou da expressão mais adequada. Para a sua mente, o essencial era a representação clara, isto é, lógica, do assunto; por isso as suas obras filosóficas, e muito principalmente o Carmen de cometa e o Quod nihil scitur, são obras de tese, e não de erudição no sentido próprio, redutíveis, por conseguinte, a um esquema relativamente simples, cuja desenvolução se opera com ritmo lógico.