Joaquim de Carvalho, historiador da cultura portuguesa, por José v. de Pina Martins ? A plena maturidade

Arquivaram-se, no volume precedente, os estudos sobre a cultura portuguesa, escritos por Joaquim de Carvalho durante a sua juventude e a sua primeira maturidade, de 1922 a 1948, dos trinta aos cinquenta e seis anos. Incluem-se neste volume IV da Obra Completa os ensaios da plena maturidade do grande investigador, isto é de 1949 a 1955, dos cinquenta e sete aos sessenta e três anos. Foi, de verdade, uma efémera “plena maturidade”, já que não durou mais do que dois triénios. Não obstante, os escritos criados ou remodelados nesta última fase são do melhor que algum dia se produziu em Portugal, tanto em rigor metodológico e em originalidade de pesquisa como em correção, limpidez e elegância estilísticas. Se Joaquim de Carvalho se encontrasse no meio de nós, teria hoje noventa e um anos. Sabendo, como sabemos, da sua capacidade criativa, da sua inquietação intelectual e da sua reflexão constante, sem pausa, com quantos trabalhos científicos e filosóficos não teria enriquecido o pensamento e a crítica, a investigação e a ensaística!

1. Ja no volume III sublinhámos a admiração intelectual que Joaquim de Carvalho dedicava aos estudos bibliográficos de D. Manuel II, corno se prova por um dos seus ensaios lá incluídos.

Neste tomo insere-se igualmente um outro contributo sobre o rei-bibliófilo, mais importante do que o primeiro, pois alarga o campo de pesquisa às livrarias reais portuguesas, exatamente como pródromo a um douto excurso relativo aos livros de D. Manuel II. O autor não vai até às minúcias de um Sousa Viterbo numa aliás interessante investigação, em que o seu erudito autor, por falta de horizontes culturais europeus, não conseguiu identificar algumas espécies; mas, como filósofo, procura servir-se da erudição para que a reflexão teórica seja documentalmente fundada. Salienta, além disso, que o patriotismo move a atividade bibliográfica de D. Manuel II e o seu esforço no sentido de reunir uma biblioteca incomparável de livros portugueses antigos: “o patriotismo deu teor à bibliofilia de D. Manuel [...] e foi o sentimento alentador das páginas dos Livros Antigos Portugueses» 5. Joaquim de Carvalho salienta, também, o excecional valor das pesquisas do antigo monarca: “os artigos que constituem o monumental volume I desta obra possuem méritos intelectuais, ou por outras palavras, são dignos de apreço pela consistência dos informes e pela coerência de alguns juízos. A esta luz, os Livros Antigos ocupam uma posição singular na nossa literatura bibliográfica, por haverem alargado a Bibliografia até quase às fronteiras da História”.

Passou a ser livraria da Coroa, portanto do Estado. Não temos elementos que nos permitam poder afirmar se a livraria da Coroa teve, como no caso da Biblioteca

Uma digressão sintética acerca das livrarias reais portuguesas valoriza este estudo. Nela se evidencia que foi, a partir de D. João I, que a biblioteca pessoal do monarca, a livraria real, Vaticana, a partir dos fins do século XV, características, já, de biblioteca pública, pelo menos através do acesso a leitores não adstritos à própria Cúria. Mas não há dúvidas de que os livros deixam de pertencer a uma entidade só —no caso sujeito o Rei— para se tornarem pertença institucional, como bem sublinha Joaquim de Carvalho, e este aspeto não foi ainda, que saibamos, suficientemente posto, entre nós, em evidência. Sublinha-se ainda, nas páginas que precedem a descrição catalográfica, que D. Manuel II não foi o primeiro rei bibliófilo, mas foi certamente “o primeiro rei bibliógrafo e bibliólogo”. Analisando a seguir os critérios bibliográficos e bibliológicos de D. Manuel II, Joaquim de Carvalho prova mais uma vez ter sido, entre os universitários portugueses deste século, um dos que melhor compreenderam que, para produzir obra científica no domínio das investigações humanísticas e historiográficas, é indispensável conhecer em profundidade, por contatos diretos, os documentos originais, sejam eles os manuscritos ou os livros impressos.

Temos frequentemente sustentado que em Portugal se tem avançado pouco no domínio da investigação das ciências humanas porque os bibliógrafos nada sabem geralmente de erudição enquanto os investigadores, mesmo quando têm uma formação universitária, não dominam as técnicas bibliográficas. Este divórcio é o resultado infeliz de um alheamento a uma visão global dos métodos de investigação heurística e hermenêutica dos textos. Analisar metodicamente os aspetos materiais do estudo bibliológico é importante, mas não basta.

Por outro lado, uma pesquisa, mesmo simplesmente horizontal, que prescinda da bibliografia e da sua técnica, é inoperante. Joaquim de Carvalho conhecia, como poucos, os documentos originais e os cimélios da nossa cultura, assim como as técnicas do seu estudo, mas era, além disso, um grandíssimo historiador, um pensador e um crítico de textos. Daí que, ao pôr em evidência os méritos de D. Manuel II, muito embora se tenha apercebido de que o mérito mais relevante se identifica com “a meticulosidade das observações biobibliográficas”, “a exação dos assertos” e “a probidade” e “a lealdade com que trabalhou”, não deixa também de evidenciar o interesse do bibliólogo pelo conteúdo dos escritos e não apenas pelos valores da sua apresentação gráfica.

Ao citar a longa página com que o rei-bibliógrafo procura explicar a importância do reinado de D. Manuel I, apresentando-o como uma continuidade histórica coerente do reinado do Príncipe Perfeito, Joaquim de Carvalho demonstra mais uma vez a sua serenidade de juízo esclarecido, pois não hesita, através de uma reflexão de D. Manuel Il — que aceita como correta judicação crítica—, tomar posição num debate muito antigo que, em Portugal, nem sempre foi objetivo e isento. Além disso, a citação serve-lhe para afirmar que a referida página, “como outras que poderiam reproduzir-se, deixam adivinhar o historiógrafo”, embora se tenha apercebido com lucidez de que D. Manuel II, desse modo, constrói um pórtico para “a descrição e a correlação histórico-cultural” da sua pesquisa bibliológica.

Pareceu-nos indispensável incluir, neste volume IV, não apenas a introdução admirável à descrição das espécies, mas também as próprias descrições catalográficas. As que concernem as peças camonianas, não sendo de Joaquim de Carvalho, limitam-se aos aspetos materiais do livro, mas as outras trazem a marca do seu autor: ex digito gigans. Mesmo na sua brevidade nos ensinam e informam. São, além disso, uma lição para tantos pretensos investigadores e “pensadores” portugueses que bem fariam em seguir o exemplo de Joaquim de Carvalho procurando apoiar-se, por um contato direto da espécie e do seu texto, nos documentos originais. Se assim fizessem, afirmariam menos ou menos apoditicamente e refletiriam mais, com base segura: em vez de nos darem longas e vazias dissertações pseudocientíficas, mesmo quando envolvidas em roupagem verbal cintilante, de moderno estilo, poderiam contribuir para o progresso da ciência com pesquisas sólidas e objetivas.

2. Joaquim de Carvalho dominou, como ninguém no nosso século, a história da cultura portuguesa, da Idade Média até ao século XX. Já vimos no preâmbulo aos estudos insertos no volume III como chegara a uma mestria invulgar dos mecanismos que regulavam as instituições medievais de cultura e a um seu conhecimento crítico e como, mediante a sua capacidade expositiva e poder de síntese, conseguia transmitir, pela palavra esclarecedora, as informações adequadas à compreensão, por parte do leitor, do que era essencial nesse funcionamento. Mas Joaquim de Carvalho não era ex professo um estudioso das instituições medievais. O seu interesse, como já se viu, centrava predominantemente a cultura e a civilização modernas, ou o que, no pensamento clássico e medieval, já aparecia como moderno. Não obstante, pela cautela com que procedia no campo documental das fontes e pela curiosidade intelectual, não desdenhou enfrentar problemas referentes à cultura da Idade Média, como, por alguns ensaios insertos neste volume, podemos comprovar.


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