Queremos referir-nos especialmente aos dois trabalhos fundamentais “A propósito da atribuição do Secreto de los Secretos de Astrologia ao Infante D. Henrique” e “Sobre a Erudição de Gomes Eanes de Zurara”. Trata-se de estudos cujo tema se situa ainda em período medieval, embora já no limiar da Idade Moderna.
A despeito de a primeira destas duas investigações remontar, como sabemos, à última fase da evolução intelectual do autor, a verdade é que Joaquim de Carvalho já desde 1924 se preocupara com ela. Depois de uma análise meticulosa e serena das probabilidades de se tratar de um escrito original do Infante, adere à opinião do historiador Duarte Leite2° e considera a obra, pelo que respeita ao filho de D. João I, como uma espécie de compilação de notas astrológicas sem originalidade, e possivelmente compiladas de fontes espanholas. Mas, para chegar a esta conclusão, o investigador ergueu toda uma arquitetura acerca do ensino institucional no seu tempo, dados os laços que prendiam o Infante à Universidade de que era protetor. É, que saibamos, o único investigador português que algum dia tenha relevado o enorme interesse de Margarita Philosophica, que teve a sua importância a partir dos inícios do século XVI, e que a tinha ainda nos finais do mesmo século, mas que representava o resultado de uma elaboração que vinha de longe.
Constitui este trabalho uma homenagem às qualidades intelectuais do Infante, o- obreiro dos Descobrimentos, mas nem por isso Joaquim de Carvalho deixa de sugerir que razão tinha o Infante D. Pedro nos seus propósitos de reforma do ensino universitário. Situa, além disso, o objeto da sua análise na perspetiva das obras de D. Duarte e da própria Virtuosa Benfeitoria: estamos, assim, perante uma lição magistral sobre a cultura da ínclita Geração de Aviz, com juízos pertinentes e profundos acerca dos textos então nascidos, e sobretudo acerca de alguns dos mais importantes temas que neles são tratados. Entre esses temas seria imperdoável não mencionar o da astrologia e da astronomia que tanto suscitavam a curiosidade do Infante, mais voltado para a ciência da Natureza, e do próprio Zurara, de uma geração mais novo, mas interessado pelos mesmos assuntos. A visão henriquina do Mundo é certamente ainda medieval, mas “a consciência da dúvida acompanhada do desejo veemente de a esclarecer” que o nosso autor atribui ao Infante é já a atitude de um espírito moderno.
O estudo “Sobre a Erudição de Gomes Eanes de Zurara” é, ainda hoje, o mais importante contributo algum dia publicado em Portugal ou no estrangeiro para o esclarecimento das fontes culturais daquele cronista. Trata-se também, como o ensaio precedente, de uma pesquisa longamente amadurecida, como o seu próprio autor reconhece.
Tendo sido, portanto, um trabalho elaborado ao longo de décadas, ou, pelo menos, licenciado na sua forma definitiva para o prelo depois de uma reflexão diuturna, apresenta conclusões de grande solidez, e tanto mais valiosas quanto é certo ter sido fundamentalmente composto sobre urna análise comparada dos textos. Quase temos a tentação de afirmar que se trata de uma pesquisa definitiva, embora saibamos que não há, no plano das ciências humanas, contribuições que possam chamar-se definitivas. Ficamos a saber que o estendal de autores gregos, romanos, patrísticos, israelitas, árabes, escolásticos, latinos, italianos e portugueses ostentado pelo nosso historiador quatrocentista nas suas Crónicas é, em grande parte, formado por leituras de segunda mão e, na sua maioria, repetitivo de citações quase ipsis uerbis reproduzidas da General Estoria de Afonso o Sábio e sobretudo da Virtuosa Benfeitoria. Joaquim de Carvalho procede, na sua análise, através de confrontos textuais que não deixam lugar a dúvidas. E que esforço de leituras não representa este longo discurso exegético e analítico! Além desse mérito, que já seria extraordinário para o nosso meio intelectual, deparamos ainda com autênticas descobertas, como a que diz respeito ao esclarecimento da menção de Hermes Trismegisto, num passo reproduzido igualmente da obra do Infante D. Pedro, cuja importância se situa, porém, no plano da insinuação em Portugal, ainda no século XV, dos textos neoplatónicos da cultura alexandrina, que já tinham muito antes penetrado na Itália onde encontraram, em Marsilio Ficino, o seu grande difusor, na segunda metade do Quattrocento.
Pelo que diz respeito aos autores italianos, as conclusões de Joaquim de Carvalho são mais positivas: Zurara conheceu, de facto, Dante, Boccaccio, Cino da Pistoia, Marco Polo e Pier Paolo Vergerio, embora se trate de uma colheita magra para uma obra tão vasta, e decerto através de traduções em castelhano, ainda que Zurara tivesse podido lê-las na língua original, que devia conhecer. Não obstante, o facto de ter demonstrado interesse pela cultura italiana quatrocentista já é significativo, pelo menos, de que a cultura moderna desse tempo começava a insinuar-se entre nós. Se tivéssemos de formular algum respeitoso reparo a este estudo, diria apenas respeito ao facto de o seu autor ter falado de “plágios” para estas repetições, já que se trata de um uso corrente, como, aliás, Joaquim de Carvalho sublinha mais do que uma vez. Estamos, portanto, perante uma investigação modelar de método e de reflexão crítica. E um grande estudo de história cultural que, ainda hoje, pode ser apresentado como paradigmático. Assim os jovens investigadores das nossas Universidades o leiam e imitem, apreendendo o seu conteúdo e a sua lição metodológica, em vez de exibirem leituras nouvelle vague com nomes complicados, cujo sentido rigoroso nem mesmo aqueles que os criaram ou lançaram na moda conhecem adequadamente.
3. A obra de Gil Vicente ofereceu a Joaquim de Carvalho pretexto para uma pesquisa notável dos laços histórico-culturais que o prendem à Idade Média. O texto “Os Sermões de Gil Vicente e a Arte de pregar” — que data de 1948, tendo aparecido num conjunto de estudos importantes— não mereceu as simpatias intelectuais de um grande estudioso francês da cultura portuguesa, I. S. Révah, que a Gil Vicente consagrou uma atenção vigilante. Na crítica frontal que Révah ousou fazer ao investigador de Coimbra, há a irreverência sadia de um jovem talentoso que deseja dar provas do seu saber, mas também uma não pequena dose de insolência. Quais eram, em 1949, as credenciais do futuro professor do Collège de France para discutir com alguém que bem podia ser seu Mestre, tanto na profundidade da ciência, como no rigor do método? Daí que, nalguns delicados reparos feitos à recensão desenvolta de Révah, tenha havido restrições visíveis aos seus remoques polémicos, mesmo por parte daqueles críticos que nem sempre talvez estivessem de acordo com o pensador coimbrão.
A Révah sobravam erudição vasta e conhecimento filológico para poder, como poucos, aprofundar a obra de Gil Vicente. Mas onde a sua preparação cultural falhava era exatamente na abordagem da densidade poética, filosófica e teológica do texto dramático. Neste domínio, Joaquim de Carvalho impunha a sua mestria incomparável.
A própria pesquisa, transfundida no ensaio, que o jovem polemista francês pôs em questão, foi vazada nalgumas páginas de grande beleza literária, a cuja elevação poucos investigadores portugueses e estrangeiros estariam em condições de guindar-se. Além disso, o estudo meticuloso da estrutura dos autos vicentinos é convincente: Joaquim de Carvalho analisa o texto poético na sua tessitura concionatória, aplicando-lhe os esquemas estabelecidos para a ars praedicandi medieval. Nisso foi muito mais além e mais longe do que Carolina Michaëlis de Vasconcelos, embora pensemos, por nosso lado, que Gil Vicente tem principalmente de ser abordado como autor de teatro. Aliás, Joaquim de Carvalho não o esqueceu nunca, pois o sublinha com frequência, quer entenda tratar-se de um sermão a sério, sem intenções jocosas e apenas com uma finalidade parenética, quer os dois objetivos coincidam.