Joaquim de Carvalho, historiador da cultura portuguesa, por José v. de Pina Martins ? A plena maturidade

Mas o que mais chocou e escandalizou o Révah de 1948 foi a hipótese de trabalho formulada por Joaquim de Carvalho no final do seu ensaio, ao pôr-se o problema de saber se conhecimentos tão precisos e pormenorizados de teologia não deverão pressupor uma escolaridade. Ora o nosso autor não afirmou que Gil Vicente tenha feito estudos regulares. Perguntou-se apenas se os seus textos e a ciência teológica que neles revela não poderão ajudar-nos a encarar uma nova perspectiva crítica acerca da formação intelectual do fundador do nosso teatro. Analisada a hipótese neste contexto, ela afigura-se-nos como cientificamente legítima, mesmo que, do estudo a fazer mais em profundidade do que o de Carolina Michaëlis, tenhamos de concluir que Gil Vicente não frequentou nunca institutos universitários de teologia.

De resto, o ensaísta confessa, com humildade intelectual exemplar, que não pretendeu, de modo algum, formular um juízo global acerca de Gil Vicente e da sua obra.

Outra conclusão do Mestre de Coimbra que pode ter suscitado reservas é a de que “Gil Vicente não chegou a atingir o ideal dos renascentes” sendo medievais a índole e o conteúdo das ideias que exprime. Aquilo que certos críticos, a começar por Teófilo Braga e depois Marques Braga, definiram como o erasmismo vicentino é, em última análise, um legado da sátira medieval. Gil Vicente não é de modo algum um renascentista, embora, na lucidez satírica do seu riso, encontremos uma forma da modernidade que surgirá com o pensamento de Erasmo e que era simplesmente, na sua obra, uma herança dos humanistas do Quattrocento. Joaquim de Carvalho não negou isso, tendo-se limitado a sustentar que, dos seus sermões poéticos, ressalta uma personalidade culturalmente medieval. E isso também não poderá ser contestado com bases documentais sólidas.

Este estudo é uma prova altamente abonatória do imenso saber e da orientação metodológica cautelosa do seu autor. Podemos discordar dele, mas teremos de reconhecer que o seu suco erudito é do mais denso que algum dia se produziu entre nós. É ver como reduz à sua insignificância os assomos criticamente inconsistentes de Teófilo Braga. Como sabe relacionar a problemática astrológica em termos de teologia e de filosofia moral. Como, sem avançar tratar-se de influxos savonarolianos, é capaz de sugerir a sua presença, definindo-os conceptualmente.

Como, enfim, com o respeito devido à grande Mestra que foi Carolina Michaëlis, não deixa de lhe formular reparos muito justos naquele contexto, embora hoje se pense que Gil Vicente, apesar do medievalismo da sua cultura, não terá sido estranho à cultura humanística que circulava na Corte em que vivia. Conviremos em que não foi erasmista: nada nos poderá impedir de pensar que recebeu um conhecimento indireto (ou até direto nalguns casos) dos temas e problemas desenvolvidos nos livros de Erasmo que existiam no Paço. Eram os livros religiosos de D. Catarina que da Espanha trouxera para Portugal textos erasmianos publicados por Miguel de Eguía em Alcalá e por outros impressores noutras cidades ibéricas.

Se I. S. Révah ainda fosse deste Mundo, com a erudição extraordinária que era a sua, principalmente a partir dos anos 55, estaria de acordo com tudo o que acabamos de escrever acerca do professor de Coimbra. Já evocámos alhures, aliás, um encontro que com ele tivemos em 1958, e em que o futuro professor do Collège de France nos pôde exprimir a admiração intelectual que votava a Joaquim de Carvalhoe a outros docentes e investigadores da Universidade coimbrã que injustamente alvejou, nos verdores de uma juventude estudiosa e ardorosa, que já anunciava o grande editor crítico do Auto da Embarcação do Inferno.

4. Se Gil Vicente é ainda medieval — e Joaquim de Carvalho prova-o com uma ciência erudita invulgar —, anuncia já, por consequência, a modernidade. O Mestre de Coimbra foi mais um historiador da cultura moderna do que da cultura medieval. Neste volume IV inserem-se dois estudos que nos debuxam o itinerário histórico que do Renascimento leva a cultura portuguesa até ao pensamento das Luzes, através do Humanismo europeu e da obra de Leibniz. E principalmente neste domínio que Joaquim de Carvalho dá o melhor da sua lucidíssima inteligência, sabendo relacionar os conceitos essenciais do pensamento histórico, através da definição das conexões significativas.

O ensaio “Sobre o Humanismo Português da Época da Renascença” é do melhor que se tem escrito não apenas entre nós, mas, podemos dizê-lo afoitamente sem receio de exagerar, em toda a Europa. Não obstante a sua já venerável idade (na sua primeira redação), este trabalho não envelheceu: recomendamo-lo como leitura de base a alguns jovens investigadores universitários que se comprazem em citar autores estrangeiros de segunda ordem, para se pavonearem com “metodologias” pseudo metodológicas que lasciano il tempo che trovano. É fundamentalmente integrado por quatro capítulos: o primeiro sobre o conceito de “Renascença e Humanismo”; o segundo sobre “A sedução da Itália”; o terceiro intitulado “Os bolseiros d’el-Rei”; e o quarto focaliza os aspetos mais salientes do que o seu autor chama “A importação do Humanismo”. São, de verdade, quatro admiráveis frescos que sintetizam a história do Renascimento humanístico em Portugal, através de uma reconstituição de grande beleza literária e de não vulgar exatidão metodológica.

Não se pode dizer, em boa verdade, que os investigadores portugueses sobre a época do Renascimento tenham dormido durante estes últimos trinta anos. Têm-se publicado contributos valiosos no plano da história das ideias, da análise dos textos e da filologia, pelo que concerne às correntes do pensar humanista. Com base em leituras críticas, valorizadas com a orientação exigente de importantes centros europeus e americanos de pesquisa, alguns dos nossos investigadores têm focado o Humanismo em Portugal através de monografias doutas e tanto quanto possível rigorosas. Não obstante tudo isso, este ensaio de Joaquim de Carvalho conserva toda a sua frescura, o seu interesse e a sua atualidade. Só uma ou outra palavra, como, por exemplo, “Renascença” em vez de “Renascimento”, como hoje se diz, é sinal exterior a assinalar que a roupagem conserva formas já vetustas com as quais não se comprazem os novos endereços científicos: mas isso até dá, ao texto, a conotação cronológica da sua génese. Quanto ao essencial, dir-se-ia que Joaquim de Carvalho não tinha precisado de análises meticulosas, diuturnas e sofisticadas, como as que hoje se fazem sobre os textos, recorrendo não raro aos computadores, e como as que, num plano de focagem analítica tradicional (quanto ao método) se têm feito sobre Cataldo Sículo, Damião de Góis, André de Resende, Jerónimo Cardoso, João de Barros, D. Jerónimo Osório e outros, para saber tudo, com uma visão harmoniosa do conjunto, acerca do que esses autores, com a sua obra e as suas relações internacionais, fizeram para definir e valorizar o Humanismo português. Além disso, soube, como poucos até hoje, reconstituir o significado dos Descobrimentos nas suas relações harmónicas ou contrastantes com o Renascimento. 

 

Se, por um lado, lhe foi fácil a tarefa pela sua grande capacidade de reflexão crítica e pelo poder de síntese na articulação teórica das ideias, dado o pendor filosófico da sua forma mentis, pôde também socorrer-se de uma preparação excecional no domínio da metodologia historiográfica.


?>
Vamos corrigir esse problema