Joaquim de Carvalho, historiador da cultura portuguesa, por José v. de Pina Martins ? A plena maturidade

Do Renascimento ao pensamento das Luzes, portanto, poderíamos intitular o itinerário intelectual de Joaquim de Carvalho, brilhantemente delineado nos dois ensaios que acabamos de analisar: conceito histórico do Humanismo português, problemática portuguesa nalguns aspetos do pensar leibniziano, sulco leibniziano no pensar iluminista nosso, donde surgirá, como derradeiro representante desta filosofia otimista — Antero de Quental escreveu, nas Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, que “o drama do ser termina na libertação final pelo bem”— a figura sedutora do autor dos Sonetos que não se resignou, como escreve o Mestre de Coimbra, “a conceber o universo sem significação e a consciência humana sem essência nem destino”. Nestas referências pertinentes a Antera de Quental preanuncia-se, de certo modo, um dos mais belos ensaios que algum dia se escreveram sobre Antero de Quental, “A evolução espiritual de Antero”, que encerra exemplarmente este volume IV.

5. O estudo sobre “Manuel Fernandes Tomás Jurisconsulto” prova que Joaquim de Carvalho fizera proveitosa escolaridade na Faculdade de Direito, mas nele sobrelevam ainda as eminentes qualidades do exegeta de textos e a formação historiográfica, aliadas ao sentimento generoso do respeito pelos ideais de Liberdade e de Justiça. A consciência cívica dos direitos inalienáveis que assistem, perante o Estado, aos membros da comunidade civil inspira-lhe páginas cheias de entusiasmo pelas conquistas novas da igualdade do cidadão perante a Lei. Este ensaio, inculcando, pela sua própria forma, um conhecimento não superficial da linguagem jurídica, vale principalmente pela capacidade de síntese, pela limpidez expositiva e ainda pela predicação implícita de um ideal de Justiça em defesa dos humildes, frequentemente espezinhados pela força do Estado despótico, através dos seus representantes e donatários.

Não seria exequível resumir aqui, mesmo em dois ou três propósitos, o essencial deste estudo, em que é posto em questão o ordenamento jurídico do antigo regime, impugnado por uma Voz que se ergueu em defesa da Justiça, que era a dos direitos de pobres aldeões e camponeses. Espoliados por um fisco que defendia a sua legalidade com base em disposições de exceção, acabavam por ficar sem eira nem beira, chegando a cair na penúria e na própria mendicidade. Instituições] eclesiásticas, cujos titulares agiam porventura em boa fé, crentes em que tinham por eles um direito histórico, colaboravam nessa iniquiquidade. Manuel Fernandes Tomás, em nome de princípios modernos e justos, põe a sua ciência jurídica ao serviço dessa causa nobre que acabou, como não podia deixar de ser, por triunfar. Reformas institucionais profundas relegaram para o museu das curiosidades históricas pretensos “direitos” injustos do poder e do Estado. Joaquim de Carvalho mais uma vez nos oferece excursos admiravelmente escritos, num estilo ao mesmo tempo entusiástico e contido, para resumir o significado duradouro da obra de Fernandes Tomás. A própria “intenção militante” do jurisconsulto liberal, a que se refere o professor de Coimbra, poderá diminuir-lhe o valor de lição jurídica, mas “sempre lhe conferirão duração intemporal e vitalidade imorredoira do ideal de Justiça, que o alentou, e a luz que as suas páginas derramam sobre a compreensão das intervenções do Estadista e do Parlamentar na instauração do Estado liberal”.

Sem diminuirmos o mérito das reflexões consagradas à obra jurídica de Fernandes Tomás, reconheçamos que a “Evolução espiritual de Antero” é trabalho de um alcance culturalmente superior, mais amplo, pelas próprias implicações do pensamento filosófico que a personalidade de Antero de Quental envolve. Não obstante, nota-se nele o ritmo rápido de composição, escrito que foi, na sua primeira forma, em 1929, só de um fôlego, quase sem capítulos, ditado pela alegria de uma profunda sintonização intelectual com o poeta-filósofo. No seu desenvolvimento e refundição, Joaquim de Carvalho manteve as mesmas características de estrutura arquitetónica que assinalam a sua primeira forma, porque o considera “essencialmente metodológico”. E por método o ensaísta entende “a atitude mental” com que se devem encarar, verificar e interpretar as manifestações da sua reflexão e da sua ação (do objeto de análise, do próprio Antero de Quental). Investigar, compreender e porventura explicar. Ë, afinal, o que Joaquim de Carvalho procura com o seu trabalho, em que se conjuga a reflexão filosófica com a documentação biográfica, a exegese literária com a pesagem crítica dos testemunhos, e tudo situado no contexto histórico-cultural, histórico-político, histórico--institucional. Um pouco currente calmo, sem pedantismos eruditos, sem uma hierarquização conceptual e temática, mas com que encanto e com que beleza e limpidez literárias! A alacridade de redação do extensor é bem indicativa de um íntimo gozo mental, pois Joaquim de Carvalho, dissertando sobre Antero, sobre as suas atitudes de reformador e de revolucionário, de apóstolo e de predicador de um ideal, quase se identifica com o sujeito-objeto da sua pesquisa e da sua análise. Há, no ensaio, um total respeito pela cronologia — que é a coerência do devir existencial —, apesar de o escritor ter definido dois grandes capítulos em que se foca a atitude intelectual do desespero (numa posição de existencialismo avant la lettre) e a atitude mental do filósofo. Numa e noutra a documentação é variada, do domínio da prosa e da poesia. — Porque o que cumpria era ir definindo o evolver de um espírito nobre e possuído da paixão pela pesquisa da Verdade. Joaquim de Carvalho cumpriu-o admiravelmente. Não é talvez o seu escrito mais importante, porque as dissertações críticas no campo da história da cultura são certamente mais relevantes, para a ciência, do que as congeminações ensaísticas, nascidas e amadurecidas no próprio momento da sua rápida criação. Mas é porventura o seu trabalho mais entusiástico, mais espontâneo, mais goethiano: e dele emerge um Antero de Quental vivo le esplêndido, autêntico e varonil, generoso e idealista, inspirado poeta das ideias e apaixonado militante da Liberdade e da Justiça.

Ao escrever, logo no preâmbulo do seu ensaio, que o século XIX “ficou aquém do século de Quinhentos”, irradiante na pujança criativa de génios como Gil Vicente, Camões e Pedro Nunes (sem falar de outros), Joaquim de Carvalho formulou um juízo crítico que mais uma vez prova a sua busca da objetividade intelectual. Porque a sua simpatia, não obstante os estudos admiráveis que consagrou a Camões, a Pedro Nunes e a Francisco Sanches, ia toda para o século que entre nós assinalou a conquista da Liberdade institucionalizada na própria estrutura do novo Estado. Ao reconhecer, porém, que em Antera toda a energia espiritual se carrilou no sentido metafísico existencial e que “a filosofia da vida humana foi o seu alvo, o universalismo a lei do seu pensamento”, o pensador de Coimbra descobre que Antero de Quental reúne todos os requisitos culturais e humanos, de inteligência vigilante e de sensibilidade racional, para suscitar não apenas uma grande admiração no plano intelectual mas ainda uma profunda simpatia, na cordialidade das atracões eletivas. Na linha do seu pensamento crítico de estudioso e de pensador, Antero de Quental é porventura o último (ou o penúltimo, pois talvez Teixeira de Pascoais seja verdadeiramente o último) dos seus amores intelectuais, que começam com Platão, se requintam em Camões, culminam em Espinosa e têm, no poeta-filósofo dos Sonetos, uma espécie de síntese lusíada de todas as apetências espirituais que vão do interesse pela especulação teorética até à irradiação autêntica, na palavra expressiva dos mais generosos sentimentos que podem habitar no coração do homem.


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