Sobre o humanismo português na época da renascença

A história, embora brevíssima, desta participação, dá-nos o contato com um dos momentos mais sedutores da evolução do espírito português, e ao mesmo tempo a compreensão da literatura quinhentista, que oscilou entre duas coisas raras: o amor da beleza, tranquila e clara, e a capacidade inesgotável de entusiasmo.

II

A SEDUÇÃO DE ITÁLIA

A influência dominante na literatura portuguesa dos meados do século XVI é o italianismo. Petrarca, Sannazaro, Trissino, Bembo, Castiglione, etc., tiveram leitores, que se deixaram arrebatar até à imitação, não tanto do que liam como, sobretudo, da essência donde procedia a originalidade italiana, isto é, a associação da admiração pelos antigos ao culto da língua materna.

Sá de Miranda não deixou inertes na estante, se é que os não trouxe para a intimidade dos seus solilóquios campesinos, Virgílio, Horácio, Plauto, Terêncio, Séneca, Platão, cujos apelos distantes ouvia com o respeito que a pátria de Dante e de Petrarca lhe ensinara. Fascinado pelos “campos sem fim” de Roma e enlevado pelas novas conceções da beleza literária, traria de Itália o stil nuovo, na ambição de provar “que a língua portuguesa é capaz de se elevar até às conceções mais belas do lirismo moderno, como o Soneto e a Canção de Petrarca, os Tercetos de Dante, enlaçados em Elegias e Capítulos segundo o estilo de Bembo, a oitava rima de Policiano, Boccaccio e Ariosto, e as Éclogas de Sannazaro com os seus versos encadeados e variação melódica dos ritmos”, introduzindo, demais, “o endecassílabo jâmbico italiano”, abrindo enfim uma nova era, o “terceiro período da poesia portuguesa, que havia de atingir em 1572 o ponto culminante com o poema da nacionalidade e da glória portuguesa, Os Lusíadas, de Camões”.

Esta imitação não foi servil, nem por sua graça atrativa a nossa literatura gravitou como satélite da italiana. Houve, antes, adaptação de formas, de ritmos, de tendências, e íntima aspiração à comunidade das mesmas origens, levada, aliás, a cabo com tanta desenvoltura que se exaltou com alacre independência no culto do vernáculo e dos temas de inspiração nacional. Não se desprende, porventura, do vocábulo, consideravelmente acrescido de numerosas palavras de importação erudita, e da nova construção literária, a inteligente ambição da clareza da frase se tornar sinónimo da transparência do pensamento, e da interiorização do sentimento estético trazer consigo a originalidade bem pessoal da expressão?

Sá de Miranda, ainda rude e pesado na frase, não escreve um verso ou período que não sejam conscientes, sinceros, sentidos. A individualização do espírito desterrara o anonimato da inspiração medieval; e no entanto, quem seguir a produção tipográfica das primeiras décadas do século XVI, observa que a imprensa foi a serva fiel das ideias, sentimentos e vocabulário tradicionais.

A explicação histórica não é favorável às revoluções súbitas, e compreender esta renovação intelectual e literária é seguir a luz, que foi amanhecer nos discípulos portugueses de Angelo Policiano, em Estêvão Cavaleiro e Sá de Miranda, e já claridade meridiana em André de Resende, António Luís, Diogo de Teive, Pedro Nunes, Jerónimo Cardoso, Damião de Góis, João de Barros, Garcia da Orta, Heitor Pinto, Jerónimo Osório e Camões.

Os três primeiros livros impressos em Portugal no século XVI, anunciadores do humanismo, são escritos em latim: Opera (1500), de Cataldo Aquila Sículo; a Nova Grammatices... Ars, de Estêvão Cavaleiro, publicada no mesmo ano (1516) em que a Idade Média se despe-dia literariamente com o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, e a Epistola Plinii secundum veram lectionem ex exquisitissimis et antiquis-simis exemplaribus. Ab Angelo Politiano magnis sumptibus et summa diligentia undique perquisitis (1529), de Martinho de Figueiredo.

O primeiro, foi obra de um italiano, que aqui ensinou e escreveu com galas de bom latino e com afagos e lamúrias de insaciável pedinchão, — balda a que, aliás, poucos humanistas resistiram; o segundo, renovou na terra pátria, com amplitude, o que havia feito em Salamanca, ad primam grammatices rudimenta, ao calor, segundo parece, do exemplo de António de Nebrija, com a Artis grammaticae praecepta (Salamanca, 1493), mas dos três só o último foi verdadeiramente, pelo espírito e pela feitura, o primeiro livro novo, renascente, por pretender explicar filológica, histórica e literariamente uma obra antiga na sua própria antiguidade.

É a primeira manifestação portuguesa do conceito de antiguidade, no pleno e denso significado que a palavra teve para os humanistas, e embora o comentário se limite ao prólogo (Epístola) da História Natural, de Plínio, pela pureza da erudição, pelo escrúpulo no exame dos códices — três, pelo menos, que Policiano coligira —, este livro, que constitui talvez uma surpresa para a cultura mediana e a raridade tornou hoje desconhecido, deveria ter sido saudado com entusiasmo no círculo letrado da Corte e da Universidade de Lisboa. É, que neste círculo, pouco a pouco, desde os fins do século XV, se haviam infiltrado e alastrado ideias renascentes no ensino da gramática, a disciplina cuja didática tradicional mais rudes assaltos sofreu, a despeito dos laudatores temporis acti, como que personificados em Aires Teles, cuja incompreensão fez sorrir graciosamente o culto conde de Vimioso:

Estudaes e fugis de mim,

 Sois latino;

Que quedas dá o ensino

do Latim? Trazeis todo decorado

O Metamorfoseos;

eu tras-vos-hey assombrado

de rir de vós.

Coitado, triste de ti

homem mofino,

que foste nascer em sino

de Latim.

Nascia-se já sob o “signo do latim”, e esta educação clássica, e por ela a do bom gosto, era obra de ascendência e influição italiana. A resposta de Poggio (1459) a Velasco de Portugal, que lhe perguntava como se aprendia a eloquência — estudando Cícero e Quintiliano não tem significação episódica.

Gomes Eanes de Zurara, qualificando a Europa do seu tempo, atribui a grandeza à Alemanha, a gentileza à França, a fortaleza à Inglaterra, mas só à Itália reconhece a sabedoria.

O diligente cronista, de sensibilidade medieval mas já voluptuoso da expressão empolada dos retóricos latinos, afirmou um juízo que transcende a predicação de um modo de ver individual para adquirir a generalidade da apreciação então dominante.

 Os factos e testemunhos comprovativos são numerosos, mas baste notar que D. Afonso V foi educado por mestres italianos, Estêvão de Nápoles e Mateus de Pisano, autor do De belli Septensi, “poeta laureado e um dos suficientes filósofos e oradores que em seus dias concorreram na Cristandade” e por iniciativa régia veio para Portugal o dominicano Justo Baldino com o encargo, não cumprido, de trasladar para latim as crónicas reais.

Com D. João II este magistério tornou-se mais amplo, pela lição de Cataldo Áquila Sículo, “grande humanista, que se correspondia com os maiores de Itália, [e] exerceu em Portugal uma ação em favor -das letras, semelhante à que desempenhavam ao mesmo tempo na corte de Castela alguns patrícios seus — podendo talvez chamar-se-lhe o educador da nobreza portuguesa.


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