Sobre o humanismo português na época da renascença

Destas orações perante o Pontífice a mais celebrada pela facúndia talvez haja sido a do bispo de Évora, Garcia de Meneses, misto de guerreiro e de letrado, de homem medieval e de homem moderno, como a luz crepuscularmente indecisa do entardecer da Idade Média e do amanhecer da Renascença.

Ao ouvi-lo exalçar perante Sixto IV (1481) a participação de D. Afonso V na cruzada contra o mouro, Pompónio Leto exclamou: — Santo Padre, quem é este bárbaro que disserta com tanta veemência? E o Cardeal Sadoleto, mais tarde, passados decénios, lendo a Oratio nos toscos caracteres incunábulos em que logo foi impressa, sentiu que era oferta digna e rara para presentear Gaspar Barreiros, que aliás de novo a deu ao prelo em Coimbra, em 1561.

Muitos, deixavam-se ficar por Itália seduzidos pelo fulgor dessa incomparável hora em que todas as energias nobres e vis do homem se soltaram com pujança e atingiram plenitude e intensidade raras vezes vistas —, e seduzindo também pelo garbo e bizarria ou pelas curiosidades do espírito.

A galeria é vasta, embora ainda se não tenha levado a cabo o apuramento com exaustiva individuação. Sirvam, porém, de testemunho àquele desconhecido Velasco di Portogallo, celebrado pelo livreiro florentino Vespasiano da Bisticci (1421-1498) nas Vite di Uomini illustri del se-colo XV pela eloquência, pelo culto dos clássicos, pelo petrarquismo e pela fortuna de possuir libri per parecchi migliaia di fiorini perchè voleva tutti i piú belli che trovata, o sumptuoso Cardeal de Alpedrinha, que esteve à beira do sólio pontifício, Gomes Hispano, crítico do averroísta paduano Nicoletto Vernia, o exilado Juda Abarbanel, o Leão Hebreu dos lidíssimos Dialoghi d'Amore, o Cardeal Miguel da Silva, poeta latino laureado, a quem Baldassare Castiglione dedicou (1529) o Cortegiano, manual da galantaria e da virtú renascente, e Mecenas dos estudos gregos, cuja generosidade tornou possível ao tipógrafo cretense de Veneza, Zacarias Calliergi, rival de Aldo Manúcio, sair a público com a primeira edição (1517) do Dicionário de Locuções Aticas de Tomás Magister, e Aquiles Estaço, secretário das epístolas latinas de Pio V e comentador famoso de alguns clássicos, designadamente de Catulo.

A Itália, por seu turno, correspondia ao enlevo que exaltava os nossos compatrícios enaltecendo Portugal e prezando alguns portugueses como se seus naturais fossem.

Nessa hora suprema da contribuição portuguesa para a civilização mundial não faltaram os humanistas, ambiciosos de celebrarem a gesta dos nossos navegantes e capitães com galas do latim polido. Os louvores irromperam de numerosas penas e de quase todos os países. A simples enumeração deles é de per si eloquente, tanto que a reunião em corpo bem organizado e disposto seria obra excelente e benemérita. Dos vários que os ensejos da leitura, que não da investigação porfiada, nos tem deparado, nenhum é, acaso, tão sedutor como o que associou o assombro da descoberta do caminho marítimo para a índia à surpreendente maravilha do conhecimento autêntico da filosofia platónica, nessa vibrante rogatória de Aldo Manúcio a Leão X, no átrio da primeira edição grega da obra do Divino (Veneza, 1513).

As gratulações e louvores pessoais quase não têm conto, tão numerosas são.

Na roda dos humanistas, que é a que importa considerar, as primeiras, ao que parece, partiram de Ambrósio Traversari e de Tomás Salvecto, de Florença, que respetivamente dedicaram ao Infante D. Pedro a tradução do De Providentia, de S. João Crisóstomo, e a Vida de Gomes de Lisboa. Mas se o malogrado príncipe foi assim distinguido na sua passagem pela cidade dos Médicis, que dizer do filho, o Cardeal D. Jaime?

Se ser honrado por artistas, poetas e sábios assinala a culminância da glória, onde e quando historial semelhante ao que Florença rendeu à memória do jovem purpurado? A terra das grandes e nobres paixões deplorou “a sua morte prematura como se fosse um luto da cidade; e os mais belos, os mais sonoros nomes da literatura e da arte contemporâneas se juntaram na homenagem comovida à sua memória, [no monumento votivo da capela de S. Miniato al Monte, em Florença]. Jamais se viu --- e se verá talvez — um tão deslumbrante grupo de artistas ligados pelo generoso pensamento comum de honrar um extinto. Repare o leitor: António Manetti, discípulo de Brunelleschi, desenhou a Capela; Andrea della Robbia modelou os azulejos da abóbada; Alesso Baldovinetti pintou a fresco a formosa Anunciação na parede fronteira ao túmulo; António e Piero del Pollaiolo pintaram o retábulo dos três Santos —, Eustáquio, Tiago e Vicente; António Rossellino foi o escultor admirável do monumento fúnebre; e Ângelo Policiano compôs o epitáfio latino”.

Poggio felicitava o Infante D. Henrique na esperança de receber informações, Flávio Biondo oferecia (1461) a sua pena a D. Afonso V, e Ângelo Policiano escrevia a D. João II uma epístola, agradável de recordar:

“Assim que, rei sem par, vós sobre todos (estoure embora a inveja) vós sobre todos sois digno de eternas honras. A vós, primeiro do que a ninguém devem de ser consagradas as nossas vigílias, quero dizer, as de todos quantos somos sacerdotes das Musas. Por tal razão (se, homem desconhecido, mas a vós mui dedicado, encontro alguma fé junto à vossa pessoa) seja incumbido, eu vos esconjuro, a sujeitos idóneos o encargo de pôr em memória (sem dúvida que interinamente), em qualquer língua, em qualquer estilo o assunto tão ubertoso dos feitos praticados por vós e pelos vossos, obra que, mais tarde, tanto os outros em quem ferve o mesmo entusiasmo, como também nós mesmos, envidando todas as forças, hajamos de polir e aperfeiçoar. Na verdade, pedi, não há muito, a estes súbditos vossos que estão aqui, mancebos de subido talento e elevado carácter, os filhos de João Teixeira, vosso Chanceler-mor, que por sua intervenção me fossem aí copiadas as memórias (se é que existem) dos vossos feitos; prometeram eles desempenhar-se cuidadosamente do encargo em respeito da obrigação que devem ao seu preceptor; todavia não quis eu faltar a mim próprio, mas assentei de vos endereçar eu mesmo esta carta, rei muito indulgente, e clemente, a quem já posso dar também o nome de meu, querendo antes poder ser arguido de arrojado, se escrevesse, do que de apoucado de ânimo, se me conservasse silencioso.

“No que respeita a minha pessoa, não é, certo, ordinária a minha condição, mas, na profissão das letras, também alguns creem que não é de todo inferior a minha reputação. Quase de menino fui eu criado (e porventura que esta circunstância virá a propósito) no seio da honesta família daquele varão ilustre, o primeiro personagem na sua tão florescente república, Lourenço de Médicis. Não cedendo a ninguém em dedicação à vossa pessoa, soube ele, falando-me de vós, acender em mim entusiasmo tão ardente pelos vossos merecimentos, que, dia e noite, eu não largo de pensar no pregão dos vossos feitos, e o mais fervoroso voto que eu agora faço é que me seja outorgada força, poder e finalmente ensejo, para que o vosso nome tão digno de divinos elogios, os testemunhos da vossa piedade, integridade, retidão, religião, temperança, prudência, juízo, os da vossa justiça, fortaleza, providência, liberalidade e grandeza de alma, e enfim os de tantas obras, tantas e tão exímias façanhas vossas, tenham monumentos fiéis levantados, ainda que seja por mim, na língua latina ou grega, de modo que não haja vicissitude de humanos acontecimentos, nem assalto de vária e inconstante fortuna nem vetustade de séculos, que venha a extingui-los”.


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