Sobre o humanismo português na época da renascença

Foram apenas projetos, talvez sinceros, talvez interesseiros, que ficaram sem realização, e só uma das Epístolas do Venturoso, que para deslumbrar o Mundo maravilhou Roma com a estupenda embaixada a Leão X, despertou o estro de um poeta, aliás obscuro.

O Cardeal Jorge da Costa como que sentiu à sua volta a atração dos paços palacianos, Henrique Caiado convivia com os humanistas Pandolfo Colenúccio, António Tebaldeo, Filippo Beroaldo, o moço, e que dizer de Francisco de Holanda e dos seus colóquios sobre a pintura, na igreja de S. Silvestre, em Roma, em 1538, com Miguel Angelo, Vittoria Colonna e Lattanzio Tolomei, embaixador de Siena?

Regressados a Portugal estes homens traziam outras maneiras, a par do culto da antiguidade e da beleza formal do latim. A corte polia-se. “Que farias tu, escrevia João de Barros (1532), se visses o modo da corte no falar, no escrever, e no vestir, quando somente de um termo te espantas? Como se achariam enleados Demóstenes e Túlio se lhe dessem uma carta de um homem destes especiais da corte?” (Ropica Pnefma).

A liberdade dos antigos volvia-se em escola incitadora e com o requinte do trato a tolerância despertava e desembaraçava o espírito. O mesmo moralista rompia já contra os “inventores de erradas doutrinas”, lembrando o exemplo da “Itália e outras muitas partes, que inventaram e descobriram coisas com que perderam vida e virtuosos hábitos de alma” (ibid.). Ténues ainda, soavam já nestas palavras as primeiras badaladas dos zelos e suspicácias, que, acompanhadas mais tarde por índices expurgatórios e censuras, haveriam de entorpecer a inteligência e gerar a vérmina da dissimulação.

A Itália tinha despertado a curiosidade, ensinado o latim, formado o gosto; o sentido da erudição, da filologia, no conceito amplo da Renascença, estava patente, mas as vias da penetração do novo saber deslocaram-se, seguindo o rumo da França e da Flandres.

III

OS BOLSEIROS DEL-REI

A introdução do termo “humanismo” no léxico português deve-se, porventura, se bem indagamos, ao desembargador João de Barros, no Espelho de Casados (Porto, 1540), e a sua consagração, se de autoridade carecesse, a Fr. Heitor Pinto, nesse livro encantador, de fronteiras indecisas entre o fervor místico, a glosa edificante e o prazer literário de soltar a pena sobre a brancura convidativa do papel, que é a Imagem da Vida Cristã (Coimbra, 1563 e 1572).

O conceito, porém, precedera em muito a aplicação do vocábulo; e embora o sentido tivesse então uma área larga, compreendendo tanto as artes humanitatis, como as humaniores litterae, humanista era já sinónimo de cultor das letras clássicas, isto é, das humanidades.

O latim, o grego e o hebreu foram considerados então “os primeiros elementos de toda a ciência” (Ropica Pnefma), porque só pelo conhecimento direto e profundo das línguas sábias se alcançava a destreza do espírito e o verdadeiro saber. Para muitos, esse conhecimento foi uma técnica, uma coisa exterior, um fim em si; e raros transpuseram o átrio das humanidades, na aspiração que João de Barros timidamente sentiu de “filosofar a verdade, deixando a própria linguagem destes Homeros e Virgílios, em que os presentes gastam a maior parte da vida” (Ropica Pnefma).

A Universidade de Lisboa do primeiro quartel do século XVI possuiu um núcleo de latinistas e gramáticos, sobressaindo neste perplexo dealbar das nossas humanidades mestre Estêvão Cavaleiro, que ousadamente ambicionou desarreigar a gramática do “ridículo” Pastrana, “corruptor da linguagem latina”. Debalde, porém, porque a “arte nova” não desterrou a tradição, e foi forçada a viver sob o mesmo teto com a linguagem bárbara da sofistaria nominalista e da ensinança das Summulae Logicales, de Pedro Hispano.

João Ribeiro, um dos mestres portugueses do Colégio de Santa Bár-bara e discípulo entusiasta de João de Celaya, não ensinaria acaso na cátedra lisbonense de Lógica (Fevereiro de 1527 — Janeiro de 1530) os “exponíveis”, os “insolúveis”, os “sincategoremas” e demais subtis distinções do terminismo nominalista?

A mentalidade humanista nasceu e, sobretudo, desenvolveu-se fora e contra o ensino oficial. A sua primeira conquista foi a clarificação gramatical, e, pelo enlevo da literatura clássica, a subordinação da lógica à dialética e à retórica. A arte de dissertar com clareza e elegância substituía-se à silogística, porque, confundindo a forma com o fundo, os homens do novo estilo estabeleceram inteira equivalência entre a ignorância do latim polido e a rudeza e debilidade do pensamento.

A origem desta atitude, tão clara nos nossos poetas neolatinos, puros na forma, lúcidos na mente, mas pobres de sensibilidade e de ideias, vimo-lo já, foi uma obra de influição italiana; a sua consolidação, porém, deveu-se à escolaridade de numerosos bolseiros do rei, — muitos dos quais regressaram mestres —, nas Universidades de Espanha, Bélgica, Inglaterra e, sobretudo, de França.

É este um dos momentos decisivos na história da mentalidade portuguesa. Por vias múltiplas e convergentes a mocidade, nobre e plebeia, leiga e religiosa, sentiu-se à altura dos tempos e ansiosa de assimilar a nova tábua de valores intelectuais. Em Alcalá de Henares e, sobretudo, Salamanca, onde a par de Élio António Nebrija e Fernan Nuries, o Comendador-grego, professam os portugueses Aires Barbosa e Pedro Margalho, estudam André de Resende, Pedro Nunes, Garcia da Orta, Jerónimo Cardoso, João de Barros (o desembargador), Amato Lusitano, Luís Nunes de Santarém, para só referir alguns dos nomes mais ilustres nas Humanidades, no Direito e nas Ciências. Para estu-darem Teologia em Oxford e Cambridge subsidia D. Manuel, em 1517- -1518, os franciscanos Fr. João Guieiro, de Tavira, Fr. Francisco do Porto e Fr. Francisco Pessoa — nomes obscuros, sem biografia, mas que significam a “europeização” desses dias lamentavelmente curtos.

Alguns dos mais límpidos eruditos e reformadores do ensino público educaram-se em Lovaina, cujo Colégio Trilingue (Buslidiano, 1517) deu a norma para os colégios de artes da Renascença ocidental. Lovaina era então o mais brilhante e sedutor centro de humanismo, ao qual presidiam Erasmo e Luís Vives; e foi sob o influxo das suas ideias e dos seus vitupérios contra a barbaridade medieva, que frequentaram a Universidade lovaniense os jerónimos Diogo de Murça e Brás de Barros (ou Braga), André de Resende (1529-1531), Damião de Góis (1532) e Aquiles Estaço.

Florença, Salamanca, Lovaina e Paris são inseparáveis da história das humanidades em Portugal: aquelas, pela qualidade dos discípulos, esta, como metrópole, pelo número e qualidade. Paris concentrou a maior parte dos bolseiros do rei e dos pensionados das ordens religiosas. A sua Faculdade de Teologia, a sacratíssima, que desde os tempos medievais gozava de indisputada autoridade, detinha uma situação privilegiada na Cristandade, sendo como escolares teólogos que a maior parte dos portugueses demandavam Paris na ambição de conquistarem o grau que significava o saber mais prezado e a coroação dos estudos universitários.

Desde os fins do século XV, paulatina e progressivamente, a crítica dos textos primeiro ensaio do livre-exame —, e a ascendência dos valores da antiguidade, em razão inversa do repúdio da técnica literária medieval, foram impondo o humanismo, cujos domínios se alargavam à custa das fronteiras da teologia. E assim muitos bolseiros, que partiam com a preparação teológica tradicional, regressavam, sem dúvida, teólogos, mas durante a escolaridade haviam descoberto, para além do Mestre das Sentenças, de S. Tomás de Aquino ou de Duns Escoto, o mundo dos antigos, que se não avistava dos castelos de silogismos e só a luz da crítica filológica e o calor da sensibilidade estética permitiam divisar.


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