Sobre o humanismo português na época da renascença

Foi este o ano em que André de Resende proferiu na abertura da Universidade de Lisboa a Oratio pro rostris. Bela e elevada oração, que assinala simultaneamente a estreia pública de um grande mestre e a afirmação da conquista do magistério das Artes pelas Humanidades!

Verdadeiro manifesto de humanismo, Resende exprime-se com a eloquência arrebatada de um pedagogo nobremente convicto da sua missão e do imperativo da época. Com a impetuosidade que faz recordar Vives, avilta a silogística estrepitosa e bárbara, e aos que a cultivam não se peja de chamar “asnos, que não homens”. Palavras inauditas, violentas por vezes, mas sedutoras na intenção, porque além do vitupério exprimiam o reconhecimento pelos pioneiros e a exortação entusiástica.

Riquezas, honras e glórias de pouco valiam perante as voluptuosidades doces, quase místicas, do labor literário: Litterarum studia, dizia, labores habent dulcissimos, dulciores fructus, curas animi recreatrices, et ob veri indagationem perspicientiamve, possessionem divinitati simillimam.

Só as belas-letras formavam o espírito, cuja floração viria a ser o sentimento da “comunidade dos homens”, e cuja seiva, a verdadeira dialética, “vizinha” da retórica, nutriria o pensamento claro vazado em frase elegante.

Em seu conceito, nem só as literaturas grega e romana deviam prezar-se. A admiração absorvente, exclusiva, fanática, pela literatura pagã poderia fletir-se moralmente para o epicurismo, e não era acaso empresa digna, perante os escombros da escolástica, ressuscitar a lição moral e religiosa dos Padres da Igreja? O Cristianismo, como as letras dos gregos e dos romanos, também possuía a sua antiguidade, e não devia esquecer-se que Tertuliano, Lactâncio, S. João Crisóstomo, S. Jerónimo, Santo Agostinho, aliavam em “scripta nitidissima” a piedade à elegância da forma.

A pureza da linguagem e a teologia não eram inconciliáveis, —Ceu vero cum religione pugnet dictionis ornatus, mas que a letra não mate o espírito. Christianus sum, non ciceronianus, exclamava, e deste pregão da sua atitude se pode fazer a característica essencial do humanismo português, tão visceralmente hostil à paganização do Homem como à divinização da Natureza.

Os votos e claros ideais desta oração ressoaram já num auditório dócil e compreensivo. A penetração humanista tornara-se realidade visível e até exigente, e desde então a marcha foi-lhe fácil: a Corte dá-lhe amparo e patrocínio, as escolas renovam-se com o magistério de antigos bolseiros, o ensino reorganiza-se com espírito de modernidade, olhos postos, sobretudo, em Paris, em Salamanca e Alcalá de Henares, atraem-se estrangeiros como Nicolau Clenardo e João Vaseu, acrescenta-se o vocabulário com a adaptação de numerosos termos latinos e surge, por fim, a poesia latina, pobre de ideias, mais ofício de escrivaninha que vibração do estro, mas límpida e castigada na forma.

O contágio atingiu a própria província e os longos silêncios do isolamento provinciano conheceram a volúpia do trabalho intelectual, sem rusticidade nem abandono às ingénuas curiosidades locais ou às vaidosas indagações genealógicas.

João de Barros, na quinta da Ribeira de Alitém, escreve (1531) a Ropica Pnefma, sob a forma de colóquio, que a ressurreição platónica rejuvenescera, não “por os de Erasmo, que estes já são velhos; mas por alguns novos portugueses, que vós e eu temos ouvido entre homens, que neste trato da mercadoria falam tão solto, como se estivessem em Alemanha, nas rixas de Lutero”.

Em 1536, Sá de Miranda converte o voluntário exílio da Quinta da Tapada em apóstrofe de espírito renovador, por vezes quase profética, e do “templo das musas” responde aos maldizentes que o nome da ociosidade soa mal; mas se ela é sã, bem empregada em vontade. Sócrates da liberdade sempre lhe chamou irmã.

António Pereira Marramaque, em Cabeceiras de Basto, faz-se propugnador da difusão popular da Bíblia, e em 1540, João de Barros, o desembargador, escreve no Porto o Espelho de Casados para dissipar o “enfadamento das noites de inverno”, iniciando entre nós um tema de alguma fortuna na nossa literatura quinhentista.

Em Évora, André de Resende vive num ambiente de configuração clássica, entre livros e antiguidades, autênticas e apócrifas, — não jornadeava sem levar um moço de enxada espairecendo no hortus conclusus, ou desentorpecendo as pernas sob a arcaria de um pórtico. A sua casa foi o solar duma pequena república literária, que ele doutrinou e exortou, sem dúvida com o espírito entusiasta e sensível à admiração que inunda os seus carmes e epístolas.

Incansavelmente curioso, afável e talvez modesto, — Nam ego homo sum qui ut mea libentissime emendari cupio: ita inuitissime aliena praecipue ab eruditis scripta emendare laboro, quod eos putem satis sibi ipsis cauere, escrevia a Jerónimo Cardoso, — Resende teve o ideal do sábio antigo, preferindo a tranquilidade da sua quinta de Valbom ao bulício da Corte. No De vita aulica, em 1535, debuxa para Damião de Góis o quadro da vida palatina, censurando-a e criticando com a mesma amargura de Petrarca e de Lourenço Valla a soberba e o conservantismo dos jurisconsultos, que aconselhavam D. João III a preferir os medievos Bártolo, Baldo e Acúrsio, dissuadindo-o, por considerações práticas, dos poetas, dos oradores e dos filósofos da modernidade.

Esta crítica brotava do âmago do seu carácter, mas ideologicamente constituía como que um corolário da Oratio pro rostris, porque dialéticos, sumulistas e jurisconsultos glosadores pertenciam à mesma estirpe de medíocres, de tal sorte que o desterro de uns importava o desterro dos outros. Por isso, ao lado da renascença das letras clássicas houve também a renascença do Direito Romano, como ramos do mesmo tronco. António de Gouveia, no De juri accrescendi, foi um dos grandes teóricos desta renovação, que as orações De disciplinarum studiis de Melchior Beleago e Jerónimo Cardoso também inculcaram.

Évora abrigou por alguns anos, ao amparo da corte e dos poderosos, o lar fulgente do humanismo. Como mestre do infante D. Henrique, o futuro cardeal-rei, para lá se dirigiu em fins de 1533 Nicolau Clenardo, que a convite do monarca Resende fora arrancar ao magistério de Salamanca. Nos anos da sua estadia em Évora, de 1534 a Julho de 1537, o sábio diestense, europeu no espírito e nas amizades, privou com André de Resende, seu conhecido desde Lovaina, João Petit, doutor parisiense e arcediago da Sé, Jorge Coelho, poeta latino e erudito, Francisco de Melo, “insigne cultor das letras”, Francisco Geraldes e António Filipe, médicos e humanistas, o doutor Rui Lopes de Carvalho, Pedro Margalho, Joana Vaz, a poetisa, e Nicolau Chanterene, o escultor.

Tão variadas relações provam a bonomia de Clenardo, e tanto ou mais que a atração sentimental do seu carácter depõem acerca da mentalidade da roda culta da Corte, na qual ele próprio confessa ter encontrado “muitos varões doutos tanto na língua grega como na latina, a ponto que nem na própria Salamanca se encontrará quem as fale tão correntemente” (Trad. G. Cerejeira).

Quando em 1536 chegou a Évora a notícia da morte de Erasmo, por cartas de Damião de Góis e de Joaquim Polites, o trânsito do príncipe dos humanistas foi pranteado com sinceridade e comemorado poeticamente na república das letras eborenses por Clenardo, Resende, Jorge Coelho e Joana Vaz.


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