Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

A Dámaso Alonso, Mestre de vicentistas, com afeto.

O entardecer da nossa Idade Média tem o encanto nostálgico do Outono. Ideias e compleições espirituais declinam com suave lentidão, sem arrancos vigorosos do pensamento nem estremecimentos arrebatados da sensibilidade. Brandamente, como um fio de água que se escoa. O espírito foi jovial, o ânimo resoluto, os modos corteses, a inteligência tranquila e segura de si, mas a mente desconheceu dúvidas promissoras, a vontade, com querer virilmente o que quis, talvez se afirmasse mais extensamente em nolições que em volições, e a expressão literária, em si mesma, como forma de arte, não teve agilidade nem se enlevou no puro prazer estético. Dir-se-ia que ninguém, por então, deixara correr a pena só movida pelo deleite de escrever. A volúpia recatada com que D. Duarte escrevera para si próprio e para a sua escrivaninha cedera inteiramente o lugar ao desejo de bem-merecer a recompensa dos poderosos, quer narrasse História, quer folgasse com metro e rima nos serões palacianos. Poetas, prosadores, pregadores, todos utilizavam o verbo para instruir ou para entreter, para defender ou para atacar. A intenção didática tornara-se o signo daquela hora vesperal, tão forte e dominador que os próprios gracejos e galanteios do Cancioneiro de Garcia de Resende nem sempre se furtam ao império das fórmulas consagradas assim como à balda sentenciosa, que é frequentemente o dote da mediocridade. Daí o desinteresse pela arte literária como expressão da sensibilidade estética, a intangibilidade de regras e preceitos, e o predomínio da temática ético-religiosa, tão absorvente que mal houve quem lançasse rápidos olhares para a gesta imensa dos Descobrimentos e tão suspicaz que não custa a descobrir a reprimenda severa sob a aparência franca do riso e do chiste.

Gil Vicente fez-se homem de letras nesta ambiência. O seu génio de poeta e a frescura da sua inspiração lírica colocaram-no fora e acima do estreito cercado do seu tempo; a sua mente, contudo, não se desprendeu da garra epocal. Na fronteira de duas culturas, a da Idade Média, que se aproximava do ocaso, e a Renascença, que entre nós foi sol nado quando a vida do Poeta descaía, o seu espírito, por mais alto que lhe ergamos a personalidade individualíssima, não pulsou nunca com a virtù, os anelos e a sensibilidade dos platonizantes, dos ciceronianos, dos paganizados, dos eruditos e dos retóricos que a revivescência das humanidades trouxe à atualidade, nem tão-pouco a sua curiosidade intelectual nem a sua consciência religiosa se detiveram um momento sobre os assomos da exegese escriturária de evangelistas parisienses, sobre a crítica textual de Erasmo e dos erasmizantes, sobre a hermenêutica teológica dos primeiros Reformados de além-Reno.

A índole espiritual de Gil Vicente e o teor das suas ideias nasceram e permaneceram na Idade Média, e só na Idade Média —, bem entendido na derradeira quadra que a sensibilidade e o pensamento medieval viveram entre nós, e tão vigorosamente que nem sequer o contagiou aquele pressentimento pré-renascente que alvorece na satisfação com que Gomes Eanes de Zurara entumecia de odres de retórica a prosa que lhe saía desbotada e alguns decénios mais tarde haveria de ser matizada por lavrantes de olhos enlevados nas belas frases dos escritores latinos.

Por isso, a voz de Gil Vicente não conheceu as galas do belo-dizer; as suas palavras brotaram do humus popular, recorrem às vezes ao vocabulário clerical e nada pediram de emprestado ao latim polido; as suas imagens têm viço e palpitam de ternura, sem a fatuidade e a bajulação vulgares nas dos humanistas; o seu pensamento, ora ingénuo, ora intencional, antepôs ao encadeamento de juízos a intuição imaginante do símbolo; as suas leituras sérias foram as de um pregador e das horas de desenfado parece não terem ido além da literatura castelhana, especialmente dos novelistas e poetas da segunda metade de Quatrocentos; o seu riso teve a alacridade irreprimível do que irrompe visceralmente da gana, se delicia com a chalaça e esmorece com a ironia; a sua razão não intuiu nunca aquele “livre exame” que submeteria à mesma disposição categorial os textos sagrados e os eventos naturais; a sua imaginação quase só delineou cenários de risco litúrgico e sempre enroupou de panejamentos medievais os mitos e figuras da antiguidade clássica; a sua conceção do Mundo foi teocêntrica, o seu ideal social, hierárquico, a sua ética, a do asceta que, apesar de condescendente e bonacheiro, desnuda o homem para que ele se não esqueça de que a vida tem de ser a preparação da morte.

O saber científico, que se constrói com o senso rígido e frio da exatidão, não lhe estava na índole, nem tão-pouco o visionou nos anos em que se alargam os horizontes da visão intelectual. Somente aprendeu e soube o saber que nutre diretamente a conduta do homem para com Deus, para com o Rei e para com os demais homens, e esse saber, que teve sempre por sustento e fito o mais veemente amor a tudo quanto era português, encontrou-o já sistematizado em Sumas e Artes, e alcançou-o talvez numa aula claustral para noviços ou aprendizes de clérigo, talvez numa escola superior, como escolar teólogo, mas não com qualquer cura sertanejo e ainda menos por exclusivo esforço de autodidata.

Formando o espírito na disciplina robusta do saber normativo, que não no explicativo, o mundo e a vida nunca lhe surgiram em si mesmos como problemas, jamais se apercebendo do estímulo dubitante destes dois polos da inquietude, porque sem mais aceitou que existiam, e muito bem, por obra e graça de Deus, tornando-se maus na medida em que o homem se extraviava do bom caminho. A sua alma e o seu espírito apenas se nutriam, verdadeiramente, de saber religioso, aliás de escassa fundamentação filosófica — prova-o a “fala” aos frades de Santarém, em 1531, em parte de inspiração augustiniana, em particular das Confissões— mas com alguma destreza teológica, e sobretudo denso de conhecimentos representáveis da doutrina católica, da vinda do Salvador, mormente do mistério” da Virgem Mãe, e da liturgia.

Consequente com tal formação, quando o existente lhe pareceu injusto, desarrazoado ou na rota do mau caminho, só lhe ocorreu apontar o norte da religião em que se criara e firmemente acreditava, umas vezes com o cenário persuasivo da evocação ou da prefiguração, com a graça da beleza lírica, com o enlevo poético, com a perspetiva transfiguradora do símbolo, outras vezes com a apóstrofe da indignação, com o escarmento do riso, da troça ou da sátira, e outras ainda com o exemplo moralizante ou com a reflexão didática —, sem aliás exortar à mortificação ascética e ao êxtase místico, jamais pondo em crise a razão de ser do próprio existente, desse pelo nome de instituições ou de ideias, de situações sociais ou de aspirações éticas. Espírito de cruzada, servido aqui e além com alma de guerrilheiro, e não desígnio de reforma, ação predicante e não atitude contemplativa.

Para quem assim nasceu dotado ou afeiçoou a mente, as formas do comportamento e os modos do conviver são os atrativos capitais da atenção; por isso, Gil Vicente, se pensou pouco, observou muito, reparando sobretudo no que brotava da terra e do viver trivial e quotidiano, e repreendeu ainda mais, com o riso fácil, comunicativo e quase sempre moralizador de quem se compraz em pôr a nu, e bem à vista, o contraste do fingimento e da realidade, da relaxação e da disciplina, do vício e da virtude.


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