Estabelecido o tema e respetivos significados e autoridades abonatórias, cumpria ao pregador discriminar as ideias contidas na “verba”. É o que ele faz, não sem explorar hilariantemente a pausa da passagem a nova parte da prédica com o gesto ridículo de se assoar a um guardanapo.
A discriminação tem por base a diversidade da origem do amor, que “viene por tres accidentes”, a saber:
a atração do olhar,
Del uno es causa vuestro mirar
y la hermosura que mira con vos,
a graça do porte,
el otro, la gracia, cuytados de nos!
que todas las cosas vencis a matar.
e o encanto das palavras e dos modos,
El otro accidente que mas atormienta,
rosas del mundo, y mas de sentir,
son los engaí-los del dulce decir,
con ciertos desvios en cabo de cuenta.
É a exemplificação destas nascentes do amor, todas elas brotando da sensualidade impulsiva, sem sombra de qualquer sublimação ideal, apesar da cortesania dos modos e das palavras, e cada uma encontrando a sua expressão concreta em fidalgos e fidalgas cujos nomes são referidos, que constitui a parte final deste “sermão”, jocoso na índole e medieval na forma e na estrutura.
Partindo de um tema virgiliano, o desenvolvimento nada tem de clássico. Ideologicamente está na linha do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende: no Amor só encontra motivos de galanteio e de comicidade, sem vislumbrar nenhum dos rasgos inovadores que a sensibilidade estética da Renascença fora colher ao sentimento da vida universal e à sugestão idealista do Banquete de Platão.
Com seus ditos, gracejos e paródias ririam uns à solta, sorririam outros forçadamente, para não fazerem má figura; e temos ainda por certo que a bancada dos eclesiásticos também acharia graça à arte de quem fora capaz de desenfadar com um sermão jocoso, respeitando as boas regras da oratória sacra e sem macular a edificação da parenética religiosa.
O terceiro sermão, ou mais exatamente, uma fala “a modo de pregação”, serve de prólogo ao Auto da Mofina Mendes, título profano de um auto hierático cujo nome próprio — o que Gil Vicente lhe deu e se harmoniza com o assunto capital é o de Mistérios da Virgem.
Tem de comum com o anterior a intenção jocosa e o ser recitado por um frade, mas apresenta a nota privativa de colocar o disparate a par da informação exata e de se filiar, no que toca à procedência literária, na tradição francesa dos sermons joyeux que prolongavam os “mistérios”.
Como notou Gustave Cohen, “estes sermões caracterizam-se pelo emprego de citações bíblicas mais ou menos estropiadas e comentadas, como era de uso no sermão”.
Nisto, e em aplicações de índole análoga, sempre de sabor clerical, D que leva a crer que nasceram nos corredores das aulas eclesiásticas, reside em grande parte o chiste destas composições, o qual hoje passa despercebido à maioria dos leitores, dado que deixaram de ser triviais DS conhecimentos que permitiam apreciar o ridículo de uma citação Fora de propósito ou o emprego caricatural de uma sentença respeitável DU de um rito litúrgico. O leitor atual é até levado a admitir que só espírito forte, que já foi estirado até às fronteiras da Reforma luterana, explica as numerosas audácias e irreverências de Gil Vicente e, ao caso que agora importa, o paradoxo de um Auto de edificação religiosa ser precedido de um prólogo no qual um frade invoca tolamente autoridades para dizer chalaças e dirigir remoques.
Quem assim pensa, vê o antigo com a luneta deformante do sentir atual, desatendendo à imensa mutação que a tolerância e a indiferença religiosa operaram na consciência média, graças às quais as crenças adquiriram em seriedade e respeito o que perderam em extensão e conhecimento.
No tempo de Gil Vicente o saber religioso era o saber comum, que se aprendia pela catequese, pela prática, pela prédica, pela leitura, e até pelas representações dramáticas de que foram expressão altíssima entre nós precisamente os “autos de devoção” do nosso Poeta. Toda a gente estava, mais ou menos, no caso de apreciar o chiste de uma citação caricatural do Breviário, dos ofícios litúrgicos, da Escritura ou dos livros mais em voga na formação clerical. A generalização destes conhecimentos pelas camadas sociais mais elevadas e médias permitia o aplauso que dá a compreensão do sentido intencional e mais ou menos velado e mordaz —, tal como os trocadilhos e chalaças políticas das revistas teatrais, dos jornais humorísticos e das conversações desenfastiadas do nosso tempo, em que a divulgação de algumas notícias ou dizeres relativos a personalidades influentes no Governo ocupa, de certo modo, o lugar que outrora ocupavam os trocadilhos e gracejos relativos à clerezia.
Prodigar tais citações e referências constituía para o gosto do tempo a prova viva e flagrante da fantasia, do bom humor, do cómico, do brincar com as coisas sérias, que sempre foi para nós a expressão mais cativante da boa disposição, -- e oxalá o seja indefinidamente, porque isso significará que não trocamos o nosso natural e continuamos a saborear o gracejo, mormente quando ele irrompe da real gana, como desenfastiante e salutar sal da terra.
Se os espectadores das representações possuíam o saber que lhes permitia apreciar o risível de umas citações de que hoje só os eclesiásticos são facilmente capazes, o dramaturgo, por seu lado mostrou com elas a extensão do seu saber teológico, bíblico, especialmente dos Salmos, e litúrgico, assim como a propriedade com que as fazia, quer as explicasse a sério para edificação das almas, quer as invocasse brincando, com intenção jocosa.
Como é óbvio, o emprego faceto de textos sagrados não tinha intenção profanadora e sacrílega, porque se a tivesse nem os Autos teriam sido representados, nem Gil Vicente conservaria a situação oficial em que morreu.
Talvez por esta razão, de prudência, talvez por voluntária inibição, a verdade é que nenhuma citação jocosa de Gil Vicente atingiu o desaforo de alguns versos dos sermons joyeux, notadamente o conhecido pelo título de Bien boire, cujo tema são as palavras de Jesus — Bibite et Comedite. Mathei undecima secunda, e de cujo teor dará ideia este passo alusivo ao Crucificado, a roçar pelo sacrilégio:
Et aussi Dieu nous avisa
De bien boyre et nous devisa
Et nous dist ce mot: Sitio.
Na profusa variedade das nascentes do riso e da troça, que dão perpétuo frescor à obra vicentina, não existe uma só que brote da intenção sacrílega. Gil Vicente fez caçoada de pessoas, explorou o ridículo de situações, exibiu comicamente baldas e saloiadas de letrados e de labregos, pôs a nu e açoitou a relaxação, especialmente do clero, mas a sua fantasia de comediante não tocou qualquer tema religioso com intenção cómica nem a sua veia trocista profanou com a duplicidade de sentido máximas e palavras de essência religiosa, como o autor do sermão de Bien boire. Somente se nos deparou um caso, a que adiante voltaremos, em que é possível descobrir o trocadilho na transformação da frase com que se designa uma celebração religiosa marial de Virginis assumptione— nesta outra, intencionalmente livre e feminil, mas sem a densidade sacrílega do Sitio do sermão francês: de virgo assumptionis, que para atingir pleno sentido se deve escrever de virgo Assumptionis.




