Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

Por isso, se compreende que a expurgação das suas obras tivesse ocorrido postumamente, já depois do Concílio de Trento, e que, em vida, os críticos do Poeta houvessem chegado à criveira de “detratores”, mas não à de censores no sentido expurgatório e policial do termo —, salvo o caso do Auto do Jubileu de Amores (circa 1525-1531), que D. Carolina Michaëlis explicou sabiamente e cuja compreensão se torna mais clara, a nosso ver, relacionando-o com o debate antiluterano da Universidade de Lovaina (1519-1520) e consequentes polémicas, censuras e proibições, as quais parecem inculcar que este auto foi vítima da guerra espiritual que então inflamava a Flandres e o cardeal Aleandro zelantemente atiçava, que não da censura intrínseca das ideias de Gil Vicente, que nada teriam de erasmistas e de luteranas, como nada têm as dos Autos que até nós chegaram.

Os nobres, os eclesiásticos e os letrados portugueses não se irritaram com as jocosidades e irreverências do dramaturgo, mesmo quando zombava e fustigava com violência a relaxação do clero, mitrado ou de mal tecida sotaina, no que aliás coincidia com a velha tradição dos pregadores e com o exemplo de alguns sacerdotes seus contemporâneos, designadamente do jerónimo Fr. António de Beja, num ou noutro período do Contra os Juízos dos Astrólogosque em 1523 dedicou à rainha D. Leonor, cujos áulicos constituíam um dos “públicos” de Gil Vicente.

Todos veriam, de certo, nas acusações e diatribes contra o estado eclesiástico, do pontificado ao “clérigo pobre”, o apelo à disciplina e pureza dos costumes, e se alguma coisa houve posta em dúvida foi a originalidade artística dos Autos, como testemunha a Farsa de Inês Pereira (1523), escrita precisamente para mostrar a “certos homens de bom saber” que eram injustos e impertinentes com as suas adversativas e suspeitas de plagiato.

O meio em que Gil Vicente viveu foi robusta e confiadamente religioso, e precisamente por o ter sido pôde rir francamente com as jocosidades e irreverências do Poeta. Se este tivesse nascido uns decénios mais tarde, se tivesse sido um filho espiritual da Renascença, que aliás a personalidade de Gil Vicente vitalmente exprimiu pela multiplicidade de dotes e de recursos, os Autos não respirariam o riso alegre e confiado e outra haveria de ser a temática e a própria índole religiosa. Atente-se apenas, tantos são os testemunhos da mutação das consciências, por exemplo, na inibição que vedou a Camões, como a qualquer dos seus coetâneos, a utilização jocosa de textos sagrados e de autoridades teológicas, — a um tempo devido à nova conceção dos fins do Estado, à rede estreita da vigilância e da suspicácia e também à própria estrutura íntima da religiosidade, tornada mais escrupulosa pela agudeza do sentimento do pecado.

Com a satisfação pessoal e gáudio dos espectadores, Gil Vicente pôde, pois, rir e zombar, moralizar e corrigir, sem outras peias que não Fossem as ditadas pelo senso moral e pelas conveniências sociais, e uma das provas disto, tão vastas e reiteradas elas são, oferece-a precisamente o sermão preambular do Auto da Mofina Mendes.

Consta esta peça de duas partes nitidamente distintas pelo ritmo das ideias: a primeira, francamente jocosa, termina com o lembrete do

rico avarento,

que nesta vida gozava

e no inferno cantava: água, Deus, água

que me arde a pousada

e a segunda, anunciadora da índole, do assunto e tenção do Auto, que assim começa:

Mandaram-me aqui subir

neste santo anfiteatro

pera aqui introduzir

as figuras que hão-de vir

com todo seu aparato.

Só aquela tem o vinco da “técnica” do sermão, mas antes de lhe seguirmos o contorno, detenhamo-nos um pouco sobre os informes anunciados, alguns dos quais levantam problemas de tão larga margem à dúvida que só consentem conjeturas. São os seguintes:

a) O Auto foi representado num “santo anfiteatro” para o qual se subia.

“Santo, perguntou Mendes dos Remédios, por indicar igreja, capela ou qualquer dependência reservada ao culto e agora apropriado à representação?”.

O saudoso Mestre, cuja memória nos é grata e respeitável, no afeto e no reconhecimento ao esforço edificador da Casa em que estudámos, não quis dar resposta às bem fundadas perguntas. O amor da certeza vedava-lho; admitimos, no entanto, que ela deve ser afirmativa. Assim, o espetáculo teve lugar em Évora, na noite do Natal de 1534, em local não profanado, — e que isso se praticava em Évora prova-o o passo das Constituições do Bispado de Évora, de 1534.

Se pelo local era adequado falar em “santo anfiteatro”, pelo assunto também o era, pois como Mendes dos Remédios mostrou o título próprio da representação era o de Auto dos Mistérios da Virgem.

Pelo que parece, passou-se de algum modo com este auto o que na Quaresma deste ano de 1534 se havia passado com o Auto da Cananeia, também hierático pelo assunto e representado no mosteiro de Odivelas, como informa a respetiva didascália.

b) O Auto é criação da fantasia de Gil Vicente, que nele deu asas

à sua fé em “Nossa Senhora”, sem se deixar prender inteiramente pela tradição literal da “legenda” da Natividade.

O “Mistério” da Virgem Mãe, como aliás outros temas dogmáticos, escriturários e hagiográficos, podia ser tratado historicamente, respeitando a ordem dos acontecimentos, olhos postos nos textos, e podia sê-lo doutrinalmente, substituindo a cronologia por outra ordem coerentemente adequada à essência da crença. Foi o que Gil Vicente fez e anunciou:

He de notar

que haveis de considerar

 isto ser contemplação

 fora da história geral,

 mas fundada em devação.

Estes versos dão novo testemunho da cultura teológica do Poeta, pois assentam na discriminação dos sentidos da Escritura ----, no caso, secundum historiam e secundum contemplationem.

Qualquer que haja sido a origem, o facto é que S. Jerónimo, Santo Agostinho, Hugo de S. Vítor, etc., impuseram a conceção da multiplicidade dos sentidos da Escritura, e, consecutivamente, dos temas religiosos em geral.

Segundo S. Jerónimo, de cujo pensamento Gil Vicente parece estar mais perto neste ponto, cumpre distinguir a interpretação histórica (juxta historiam), caracterizada pelo respeito à sucessão dos factos; a tropológica, na qual o espírito se eleva da letra a vistas mais largas; e a espiritual (juxta intelligentiam spiritualem), pela qual a contemplação transporta a alma para o mundo superior da beatitude. Fosse ou não esta a sugestão, pois é também verosímil que tivesse em vista a distinção secundum historiam e secundum allegoriam de Santo Agostinho e de Hugo de S. Vítor, sempre fica líquido que Gil Vicente construiu o Auto sem a preocupação da sucessão cronológica dos acontecimentos, e que anunciou este seu propósito com as palavras por assim dizer “técnicas” da interpretação escriturária do seu tempo.

A esta luz, tendo-se presente os Evangelhos e, sobretudo, a Legenda aurea Sanctorum, de Voragine, é relativamente fácil discriminar no Auto a parte atinente à história da pertencente à fantasia e reconstituir o processus da imaginação criadora de Gil Vicente.


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