Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

Sem estabelecer o paralelo com a “legenda” De nativitate Domini, basta ao nosso propósito deixar acentuado o seguinte esquema doutrinal do Auto:

— Profecias das Sibilas Ciméria e Erutea e de Isaías acerca do Messias, que nascerá de uma virgem sem pecado. A fonte pode ter sido a Natividad, de Encina, mas Gil Vicente introduziu elementos pessoais.

— Interpretação da visão de César Augusto pela Sibila Cassandra, da sarça ardente e incombusta e da escada de Jacob, como anunciadoras da Mãe de Deus. Encina não parece ter sido a fonte visto serem diferentes as interpretações de Gil Vicente; a Legenda, de Voragine, foi muito provavelmente a fonte da referência à visão de César Augusto, como se pode ver no apêndice. É de notar o aparecimento da Sibila Cassandra que supomos invenção de Gil Vicente, pois o texto da Legenda não individualiza a sibila e o comum da Idade Média e da Renascença, especialmente os artistas italianos, referiu a visão do César à Sibila Tiburtina.

— Saudação do Anjo. Fonte: A Legenda aurea.

— Ajuntamento dos pastores. Apólogo da Mofina Mendes, que adiante será analisado.

“Contemplação sobre o nascimento” do Messias. Transfiguração pessoal de Gil Vicente.

— Nascimento do Messias e fala do Anjo aos pastores.

Como é óbvio, o Auto não foi construído secundum historiam, porque muito embora comece pelas profecias, a verdade é que é à luz do Evangelho, em especial da Saudação do Anjo Gabriel, que considera a profecia de Isaías, o qual historicamente é colocado a par das Sibilas, o que é de per si suficiente para pôr a descoberto a medievalidade do pensamento vicentino.

A construção foi, pois, doutrinal e alegórica. Ao contrário do Breve Sumário da História de Deus (1526-1528?), em que seguiu a ordem dos tempos, no Auto da Mofina Mendes, foi por saber que o Anjo tinha sido enviado a Maria, que compreendeu e invocou as profecias antigas.

O ritmo de pensamento não é, pois, intrinsecamente histórico, mas alegórico, partindo do post para o ante.

c) O título originário do Auto foi o de Mistérios da Virgem: A qual obra é chamada: Os Mistérios da Virgem.

O título de Auto da Mofina Mendes é-lhe, pois, posterior e, pode dizer-se inadequado, dado o seu sabor profano e a circunstância de proceder da generalização de um “passo” que, como veremos, é a transposição cénica de um exemplum utilizado na pregação.

Se o título não oferece dúvidas no que toca à intenção de Gil Vicente, já o mesmo se não pode dizer sob o ponto de vista histórico-literário.

É este o único passo da sua obra em que Gil Vicente emprega a palavra “mistério” com o sentido que a palavra tinha no teatro francês, e quando se compagina este facto com o outro, igualmente singular, de ter feito preceder o Auto de um sermão jocoso, no gosto e na forma dos sermons joyeux, surge irresistivelmente o problema da possível influência de um “mystère” da Natividade.

d) O Auto tem como núcleo central a Saudação do Anjo Gabriel. Gil Vicente o disse:

Será logo o fundamento

tratar da Saudação,

e depois deste sermão

um pouco do nacimento

tudo per nova invenção.

Do Mistério da Incarnação, o Poeta somente dramatizou a Saudação. Pôs em cena uma «contemplação sobre o nascimento», isto é, moralizou com tocante beleza, ternura e ingénuo simbolismo o motivo do nascimento do “Senhor que há de nascer”, mas o momento da Natividade como que marca o limite da representação cénica da vinda do Salvador, pois somente no Auto da História de Deus e no da Cananeia Gil Vicente deu brevíssima expressão teatral a passos da vida de Jesus Cristo. Vedou-lho, porventura, a índole da sua fé religiosa, à qual repugnaria enroupar de trajes humanos a pessoa divina do Cristo; mas fosse ou não esta a razão de não ter ido além do Presépio, sempre ressalta de constante o primado do tema da “Nossa Senhora” na dramatização religiosa de Gil Vicente.

É este um assunto a estudar, e em especial o da maneira como o Poeta concebeu e tratou o “mistério” da Virgem Mãe, comparando-a com a conceção de espanhóis e franceses. O dramatismo inerente à religiosidade do “mistério”, como aliás os passos da vinda e da vida do Salvador, apresenta em todos os escritores rasgos comuns, desde que permaneçam na ortodoxia, mas a circunstância do nosso Poeta sempre ter dado preferência ao tema de “Nossa Senhora” é revelador de uma afetividade que radica na nossa sensibilidade ancestral. Como notou Gustave Cohen, de sábia autoridade, é um dos rasgos próprios do nosso Poeta dramático.

e) O Auto foi anunciado aos espectadores como novidade.

Tudo per nova invenção

 disse Gil Vicente, não sendo talvez possível indicar com exatidão o que tinha em mente com tais palavras.

Atentando no “cerra-se a cortina”, que cenicamente marca “o passo” da Saudação do Anjo Gabriel para o do ajuntamento dos pastores, pode pensar-se que o Auto apresentaria a inovação de ser representado em palco simultâneo, para empregar uma expressão que Paulo Quintela me deu a conhecer e concisamente dá a entender o que tenho em vista: os “passos” do Auto representar-se-iam num só palco que se dividia em tantas secções quantos os “passos”, por forma que ao terminar a representação de um “passo” se cerrava a “cortina” dessa secção e começava imediatamente o “passo” seguinte na sua secção própria.

É de crer, porém, que a “nova invenção” dissesse respeito à conceção cio próprio Auto, mas neste caso as dúvidas adensam-se ainda mais, por acudirem ao espírito três hipóteses, sensivelmente do mesmo volume lógico:

O Auto foi construído de olhos postos num “mistério” francês, precedendo-o de um sermão jocoso, peça única na obra vicentina. Nesta hipótese, “nova invenção” equivaleria a um tipo de representação ainda não visto em Portugal.

O Auto é novo em comparação dos autores espanhóis, em especial da Natividad, de Juan de Encina. Nesta hipótese, “nova invenção” seria sinónimo de originalidade.

O Auto é novo em comparação da obra anterior de Gil Vicente, isto é, das expressões dramáticas que até então havia dado aos “Mistérios da Virgem”. Nesta hipótese, “nova invenção” significa orientação diversa.

Bastam estas sumárias observações para mostrar que a segunda parte da fala a “modo de pregação” nada tem de jocosa. É um prólogo, no pleno sentido da palavra, recheado de informes e de advertências.

Não assim a primeira parte, de índole brincalhona e com o bote de algumas ferroadas satíricas. Atentemos nela por assentar, fundamentalmente, na paródia à citação de autoridades, trivialmente praticada e recomendada pela “técnica” do sermão.

O frade começa por apontar as

Três cousas... que fazem

ao doudo ser sandeu,

a saber: nascer com pouco siso, ser de fraco préstimo o com que se nasceu, e a falta de senso das realidades e das proporções, que

... das ondas faz ilhéus.


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Vamos corrigir esse problema