É esta última forma de insensatez que constitui, de certo modo, o tema da “pregação” jocosa e que adiante, no decurso da representação, será exemplificada com gracioso e poético simbolismo por Mofina Mendes.
Como era do estilo, o tema carecia de abonação. Foi o que Gil Vicente fez nos seguintes versos:
Diz Francisco de Mairões,
Ricardo e Bonaventura,
não me lembra em que escritura,
nem sei em quais distinções,
nem a cópia das rezões; mas o latim
creio que dizia assim:
Nolite vanitatis debemus
confidere de his, qui capita sua
posuerunt in manibus ventorum, etc...
O leitor que seguiu o fio condutor deste ensaio notou já com clareza que Gil Vicente parodia nestes versos a regra de que o sermão deve abrir com a indicação do tema, logo seguida da respetiva abonação: o objeto do tema é a insensatez que “das ondas faz ilhéus”, o qual é vertido para latim macarrónico com a ideia de que ninguém confie nos que puseram a cabeça nas mãos do vento — qui capita sua posuerunt in manibus ventorum —, e aparece abonado pelos três teólogos.
O tema tem graça, e mais jocosidade lhe dá a abonação do disparate verbal — que não conceitual — com a autoridade concordante do místico da Escola de S. Vítor, Ricardo de S. Vítor, e de S. Boaventura, o doutor seráfico, a par da do nominalista e discípulo de Duns Escoto, Francisco de Mairões, que pelo século XV foi citado com alguma frequência pelas suas opiniões económicas que, de algum modo, atenuavam a tradicional condenação da usura, colocando-se, portanto, na linha ideológica que conduz ao conceito moderno do capital.
Para tecer estes graciosos disparates, por demais ligados com finura, era preciso saber o que se estava a dizer e ter tido algum convívio com os teólogos escolásticos, como era necessário também que os espetadores possuíssem os conhecimentos que lhes permitissem compreendê-los e apreciá-los.
Por não ter sido lida à luz da técnica do sermão, esta peça tem sido vítima da incompreensão — designadamente de D. Carolina Michaëlis. A respeitada Mestra e Amiga — único nome que invocaremos, porque isso sempre nos é grato, porque nenhum outro se lhe compara e ainda pelo seu exemplar amor da verdade e digno sentido da “ciência das letras”, o seu máximo legado, — leu este sermão à luz deformante de um Gil Vicente que haveria de possuir o saber humanista para merecer as honras de homem culto; por isso, deixando por explorar a ideia de que a medievalidade das palavras corresponde à medievalidade do pensamento, escreveu na Quarta Nota Vicentina que o fim do Poeta fora “o de satirizar os que tinham nascido em sino de latim” e que o seu latim, propositadamente macarrónico, era “uma geringonça pior do que o Zeb zeberet e zeb zemeni cabalístico de feiticeiros e nigromantes, exatamente por ser pretensiosa e juntar conceitos a conceitos, incompatíveis entre si.
Indicado e autorizado tão jocosamente o tema, a paródia continua, sempre de olhos fitos na Ars praedicandi; por isso, à proposição do tema segue-se a discriminação e desenvolvimento das ideias nele contidas.
São várias, tendo todas, no entanto, a nota comum de associarem o disparate ao pensamento moralizante, de satirizarem condutas ou ideias, e de serem abonadas com autoridades, cuja companhia é hilariante, pelo anacronismo, pelo contraste, pelo despropósito e pelo jogo de palavras.
Quere-se coisa mais risível do que provar o desacerto do juiz
... que tem jeito no que diz
e não acerta o que faz,
com este rol de citações adrede dispostas para fazer soltar a gargalhada?
Diz Boécio —De consolationis
Origenes, Marci Aureli,
Salustius —Catelinarum,
Josepho —Spe[c]ulum beli,
Glosa interliniarum.
Vicentius —Scala Celi
Magister Sententiarum,
Demóstenes, Calistrato,
todos estes concertaram
Com Scoto livro quarto.
O título exato ao lado da autoria disparatada, a Glosa interlinear, de Anselmo de Laon, a par de Demóstenes, Orígenes, o Padre da Igreja, de braço com Marco Aurélio, o estoico pagão, etc., etc., não são acaso disparates jocosamente dispostos para parodiar a “técnica” do sermão, alardeando uma espécie de saber então cultivado e apreciado?
Brinca brincando, Gil Vicente vai dizendo da sua justiça, com mira em coisas sérias; por isso, a par da censura ao desacerto das sentenças judiciais, ridicularizou o crédito que alguns concediam aos prognósticos — a crítica da astrologia é um dos temas constantes na obra vicentina e cujas origens são, a um tempo, teológicas e palacegas, do paço da Rainha D. Leonor —, e exortou os pais sem filhos à obra caridosa de criarem
... desses enjeitados
filhos de clérigos pobres,
apelando sempre, como justificação, para o chamariz copioso e risível das mais despropositadas autoridades.
Destas citações duas há que merecem atenção especial por derivarem de uma forma de gracejo que sempre foi apreciada. Atentemos nelas como indício da conformação do espírito de Gil Vicente, senão do vinco clerical na formação da sua juventude.
É a primeira, a citação de ALEXANDER — de aliis, que ocorre no seguinte passo:
o bruto animal da serra,
ó terra filha do barro,
como sabes tu bebarro,
quando há de tremer a terra,
que espanta os bois e o carro?
Pelos quais dixit Ancelmus
e Séneca —Vandaliarum
e Plinius —Caronicarum,
et tamen Glosa ordinaria,
e Alexander —de aliis,
e Aristóteles —de secreta secretorum
Escreveu D. Carolina Michaëlis, que a citação “tem aparência de ser título de uma obra de certo Alexandre: e Alexander de aliis. Entendo todavia que não é.
“Suponho que Gil Vicente escreveu de ales e que os editores o “emendaram”, quer em 1562, quer em 1834! Interpreto de Ales por de Hales e refiro-o ao Doctor Irrefragabilis (fal. 1245), aquele eruditíssimo professor que, educado na cidade inglesa de Hales, brilhou como professor na Universidade de Paris, comentando as Sentenças de Pedro Lombardo, e escrevendo sobre base aristotélica uma Sumam universae theologiae (em 459 Questões).
“Duvido que o poeta tivesse a ideia de, brincando, censurar com o dúbio de ales o facto de esse de Hales haver tratado de omnibus et quibusdam aliis. Quem desconhecer a grafia de ales, consulte se puder, os n.° 4, 4876 e 14.092-14.095 do Registo de D. Fernando Colón, na própria Sevilla, ou no Catálogo dos Impressos (vol. I, pp. 43 e segs.)».
Com a insigne Mestra admito por eminentemente verosímil que Gil Vicente teve em vista o Doctor Irrefragabilis, mas não me parece coerente com a índole jocosa desta peça endossar a desfiguração de Ales em aliis aos editores. Hipótese por hipótese, suponho mais natural e lógico que o Poeta quis gracejar com a onomatopeia de Ales (pronunciado à portuguesa) e exprimiu o gracejo com o dúbio aliis, que sonicamente tanto pode referir-se a outras coisas ou pessoas, como a alhos.




