Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

Atribuir a de aliis o sentido de — dos outros, ou de — várias coisas, não tem graça; mas já o mesmo se não dirá se se lhe atribuir o sentido — dos alhos. O dúbio é então perfeito; e por isso suponho que nesta citação Gil Vicente teve o propósito de fazer um trocadilho com o apelido do Doctor franciscano, convertendo Alexander de Ales em Alexander — de al[l]iis, isto é, Alexandre - no dos alhos.

Esta hipótese, embora coerente com a índole jocosa da “pregação”, comporta uma margem larga de incerteza; não assim a outra citação - BERNARDUS - de virgo assumptionis —, de sentido claro e manifestamente intencional. Ocorre neste passo:

Pelo qual diz Quintus Curtius

Beda —de Religione christiana,

 Thomas — super trinitas alternat,

Agustinus —de Angelorum choris,

Hieronimus — d'alfabetus hebraice.

Bernardus — de virgo assumptionis,

Remigius — de dignitate sacerdotum.

Estes dizem juntamente

nos livros aqui alegados:

se filhos haver não podes,

nem filhas por teres pecados,

cria desses enjeitados,

filhos de clérigos pobres.

Todos os nomes invocados, de fácil identificação, salvo o último, pois a Patrologia Latina, de Migne, coligiu escritos de cinco Remigius diversos, pertencem à história literária, mas não são autores de nenhum dos livros que o pregador lhes atribui. De nenhum!

Puros títulos de fantasia, como quem quer pode verificar dando-se ao trabalho de examinar a Patrologia Latina, de Migne, inventados por Gil Vicente para corroborarem uma censura jocosamente mordaz. De alguns dos títulos escapa-nos a razão de ser do gracejo, a tal ponto que parecem charadas —, designadamente a atribuição a Thomas (de Aquino, subentenda-se) deste livro de péssimo título macarrónico, Super trinitas alternat, e a Augustinus (o Bispo de Hipona) de um De angelorum choris.

É hoje difícil, senão impossível, captar o raciocínio que conduziu a estes gracejos, assim como avaliar o grau de hilaridade que eles despertaram entre os eclesiásticos que assistiram à première. Não assim com a citação que nos ocupa.

A intenção jocosa é clara, o sentido malicioso, evidente: basta olhar para ela, lê-la como frase macarrónica e traduzi-la à letra, considerando a segunda palavra como um dúbio português e latino, colocado no ablativo como pede a proposição, para que logo ressalte o trocadilho que de De Virginis assumptione fez De virgo assumptionis, ou melhor, para tornar o sentido graficamente mais expressivo, Assumptionis, tendo Assumptio o significado de nome próprio feminino.

Nem só por este sermão jocoso o Auto dos Mistérios da Virgem reflete a mentalidade predicante sob a forma histórico-cultural que ela revestiu na Idade Média, porque a manifesta ainda, e admiravelmente, no apólogo da Mofina Mendes, cuja popularidade deu ao Auto o seu título profano e cujo valor estético assinala uma das mais belas criações do génio vicentino. Atentemos, pois, neste belo “passo”, situando-o no desenvolvimento do Auto e procurando-lhe a origem e significado.

Após a retirada do Anjo Gabriel, ou mais exatamente o “cerrar-se a cortina” sobre o “passo” da Saudação, a representação continua com novo “passo”, que tem por figurantes pastores de gado, um maioral e uma pegureira, cujo nome, Mofina Mendes, assinala na nossa história literária a expressão admirável de uma maneira de ser e de uma conformação psicológica e moral.

O cenário, as personagens, o assunto dos diálogos e os dizeres são outros.

O Poeta, agora, põe de banda a literatura religiosa substituindo-a pela observação da mísera condição humana, e em vez de expandir com suavidade lírica a sua ternura pela Virgem Maria compraz-se em dar vida e personificação à insensatez. O contraste parece completo, — acolá, o mundo religioso, aqui, o mundo profano —, donde os mais desencontrados juízos acerca deste “passo” e do apólogo famoso.

Brito Rebelo considerou-o “um episódio que nada tem com o entrecho da peça”se, e D. Carolina Michaëlis, “um passo profano intercalado nos Mistérios da Virgem”. Em sentido oposto a estes juízos, escreveu Vasconcelos Abreu, a cuja erudição cabe a primazia no esclarecimento das fontes do apólogo, que este “é um verdadeiro avadana escrito por Gil Vicente, com a intenção com que o foram os avadanas: para “proveito e exemplo”; e esse avadana e a fala do frade são a moldura (que vale mais que o painel) em que o poeta encaixilhou o auto de “Os Mistérios da Virgem”, para mostrar que deve cada um dar-se por pago do que Deus lhe der, sem conjeturar acerca do que possa vir. Ambas as partes, a primeira e a última, do auto, são evidentemente a de um todo separado para meter de permeio o auto de “devaçam”.

Mendes dos Remédios, por seu turno, nas páginas que dedicou a este Auto e nas quais sobressaem as indagações relativas às fontes bíblicas, pôs em destaque o carácter religioso, protestando em nome da “razão e do sentimento artístico” contra o juízo de Vasconcelos Abreu. “Se o episódio dos pastores, disse, põe uma nota de rústica graciosidade no Auto, não esqueçamos o equilíbrio geral do quadro, em que domina superiormente a imagem da Virgem, modesta e humilde, não obstante os augustos destinos, que na economia da Redenção lhe eram traçados”.

Esta disparidade de pareceres acerca do valor de posição do apólogo no conjunto do Auto é como que o reflexo da divergência acerca da estrutura do próprio Auto. Baste, para a testemunhar, a rápida referência às opiniões de Menendez y Pelayo, que nele viu uma composição em que alternava “lo más cómico con lo más devoto” se, de Aubrey Bell, que o considerou “uma combinação de farsa e de auto religioso e pastoril”, e de Esteves Pereira, que lhe encontrou “unidade de ação, que é a celebração festiva do nascimento do Menino de Deus; e a ação desenvolve-se com regularidade seguindo a ordem cronológica dos factos, profecias acerca da vinda de Cristo, anunciação da Virgem Maria, e nascimento do Menino de Deus”.

Deixando de lado a análise crítica destes juízos, dada a índole do nosso estudo, afigura-se-nos que o Auto dramatizou um tema cujo desenvolvimento implicava a sucessão de “passos” em que uns somente podiam ser concebidos e tratados de maneira religiosa e outros seriam tanto mais perfeitos quanto mais humana e realisticamente fossem considerados. É que o Natal não despertou em Gil Vicente apenas a evocação do Menino Jesus, do Deus que se humanou, e da Virgem que o deu à luz. Considerou-o essencialmente, e a um tempo, o momento culminante de uma doutrina teológica e a expressão tocante de uma representação poética.

Como doutrina, o Natal assinala o termo do mundo antigo, simbolizado nas Sibilas, e o início da “hora” em que

cordeiro divinal

……………….

……………

... teu corpo humanai

quer caminhar pelo mundo,

(Auto da Mofina Mendes)

e encerra o “mistério” da Incarnação e o triunfo da teologia católica. Este aspeto doutrinal, no qual deve acentuar-se a preferência pelo tema da Virgem Mãe, é para um crente ortodoxo, como foi Gil Vicente, de essência universal e impessoal. Não assim a representação poética da Natividade.


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