Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

IACQUES DE VITRY: Sermones vulgares:

Similes (dissipatores) cuidam vetulae, qui, dum in urceo terreo ad forum lac portaret, cepit cogitare in via quomodo posset fieri dives. Attendens au-tem quod de suo lacte tres obolos habere posset, cepit cogitare quod de illis tribus obolis emeret pullum gallinae et nutriret, ita quod fieret gallina, ex cujus ovis multos pullos acquireret. Quibus venditis, emeret porcum; quo nutrito et impinguato, venderet illum, ut inde emeret pullum equinum, et tandiu nutriret ipsum quod aptus esset equitandum. Et cepit intra se dicere: Equitabo equum illum, et ducam ad pascua, et dicam ei io, io. Cum autem haec cogitaret, cepit movere pedes, et, quasi calcaria in pedibus haberet, cepit talos movere et prae gaudio manibus plaudere; ita quod motu pedum et plausu manuum urceum fregit, et, lacte in terra effuso, in manibus suis nihil invenit, et sicut prius pauper fuerat, ita postea pauperior fuit.

(Do ms. lat. 17509, fl. 46, da Biblioteca Nacional de Paris. Apud Lecoy de la Marche, La chaire française au XIIle siècle d'après les manuscrits contemporains, Paris, 2.a ed., 1886, p. 303, n. 2).

A primeira coisa que ressalta do confronto é a dependência destas narrativas de uma fonte comum. Sob este ponto de vista, são atuais os juízos de Vasconcelos Abreu e de Esteves Pereira quando as fazem remontar ao “avadana” indiano. A fonte originária, porém, mediante as traduções atrás referidas, ramificou-se nos séculos XIV e XV num pequeno delta, de sorte que o problema consiste em saber qual dos braços do delta atingiu a imaginação de Gil Vicente.

Vasconcelos Abreu não hesitou em declarar que tinha “por certo que Gil Vicente não conheceu a tradução castelhana deste texto [do Calila e Dimna], mas conheceu a obra de João de Cápua”, acrescentando que a “parábola de Doria Truharia no Libro de Patrónio é, me parece, a que, propriamente, foi o modelo que serviu” ao Poeta. Esteves Pereira, como vimos, e com ele Mendes dos Remédios, parti-lharam desta opinião, admitindo portanto que a “história” do Conde de Lucanor tivesse sido a fonte vicentina.

O assunto é por essência dubitativo, dada a dificuldade do juízo transpor a barreira que intercepta o passo da conjetura à certeza. Fica, não obstante, de permeio entre uma e outra o terreno da verosimilhança, e com pé neste terreno, de seu natural movediço, afigura-se-nos que a lição de Jacques de Vitry foi a faísca que encandeou e fez desferir a imaginação criadora de Gil Vicente.

Qualquer das parábolas podia servir de incentivo, mas só o exemplum do sermão de Vitry se compagina harmoniosamente com o apólogo vicentino.

Aparenta-os, em primeiro lugar, o facto de apresentarem o mesmo tipo de mulher, de índole perdulária e já entrada na idade no exemplum, uma velha, no apólogo, uma quarentona —, e de imprimirem à ação, ao contrário das outras duas historietas, um ritmo apressado que conduz rapidamente ao desfecho; e em segundo lugar, aproxima-os ainda a circunstância de ambos situarem a comicidade no desenlace, e não em incidentes do entrecho, e, sobretudo, o facto de um e outro darem expressão afim à manifestação do contentamento: a velha estouvada faz sapateado e bate palmas, a Mofina Mendes toda se saracoteia e enleva no “bailo”. São, pois, parentes muito próximas na estouvanice.

Na narrativa do Diretorium humanae vitae o protagonista é um eremita e com a fatigante historieta pretende-se acima de tudo exalçar a moralidade de que não faz bom cabelo trocar o certo pelo duvidoso e que o homem prudente só deve falar do que sabe. O seu relato não tem a vibração quente que leva ao estonteamento febril da imaginação e ao rodopio do bailado da Mofina Mendes. A frialdade da narrativa, por demais distantíssima do entrecho do apólogo vicentino, gera a atitude cauta da prevenção, que o povo traduz pelo sabido adágio de que “mais vale um pássaro na mão do que dois a voar” —, e que assim é, ou melhor foi para a sensibilidade castelhana nos derradeiros anos do século XV, mostra-o a gravura representativa da moralidade do exemplum de João de Cápua inserta na versão da sua obra,

publicada, como dissemos, com o título de Exemplario contra los engaños: y perigos del mundo, e que acima reproduzimos, para que se torne visível o contraste com a conceção vicentina.

Com a “história” do El Conde Lucanor, de D. Juan Manuel, a diferença é menor, mas nem por isso deixa de ser ostensiva.

Mofina Mendes não é doña Truharia. Ë outra mulher, na índole, na condição, no devaneio e na figuração simbólica.

A índole é a de uma doidivanas sem assento, daquela espécie bem conhecida na algibeira, na paciência e na indulgência dos que trazem serviçais fora da vista, confiadas à vigilância do “Deus dará”, ruins no desmazelo, ridículas na insânia evasiva da imaginação, impertinentes no reclamar, resmungonas no receber, às vezes bem mandadas nos modos e quase sempre simpáticas na resignação à pouca sorte, que tão bem quadra ao “pobrete mas alegrete” do dizer popular.

O seu estado, de pobretana sem eira nem beira, vivendo ao léu, da soldada e do que Deus dá, não é o de doña Truharia, “assás más pobre que rica”; e as circunstâncias que deflagram o delírio imaginativo também são diferentes, como são diferentes a expressão do entusiasmo, o ideal que lhes encandece a fantasia e a repercussão afetiva do desastre que as chama imperativamente à realidade comezinha e trivial.

À razão intrínseca acresce a extrínseca, porque se do Conde Lucanor se diz ter sido a fonte mais provável pelo facto da obra ser “conhecida na corte de Portugal, desde o tempo d’el-rei D. João I”, ter feito “parte dos livros de uso d’el-rei D. Duarte, e provavelmente ainda era conservada na livraria real d’el-rei D. Manuel, onde Gil Vicente a poderia ter lido”, por maioria de razão se deve dizer que a fonte radica na narrativa de Jacques Vitry, dada a extraordinária voga alcançada pelo seu tesouro de exemplos.

Apesar das indagações, não podemos, pelo menos por agora, indicar o livro onde Gil Vicente a poderia ter colhido, se é que a não ouviu a qualquer pregador; mas quando se pensa que o Poeta possuiu uma cultura eclesiástica variada, adquirida, como é mais crível, nos bancos de uma aula, o juízo inclina-se fortemente para a influência de um sermonário, de preferência à da leitura do manuscrito do livro de D. Juan Manuel, que só “provavelmente” se guardaria na livraria real passados alguns decénios do testemunho da sua existência.

A impossibilidade de se determinar com exatidão a fonte inspiradora do apólogo vicentino só reverte em maior glória do Poeta: mostra que o génio de Gil Vicente se não rendeu com subserviência ao modelo tradicional e soube extrair do velho “exemplo” indiano, sucessivamente remoçado e modificado na dramatização do fundo psicológico e da intenção moral, a centelha original e fulgurante da beleza, da moralidade, da teatralidade e até da densidade didática do símbolo.

Do símbolo, com efeito, porque Mofina Mendes não é apenas a personificação da insensatez,

que faz do vento cimeira,

e do toutiço moleira,

e das ondas faz ilhéus.

Como tipo humano, Mofina Mendes apresenta feições nativas, da nossa gente, da nossa terra e do nosso onomástico popular quinhentista, mas pertence pelo carácter à numerosa e dispersa família de Insensatos que tem por tronco comum o avadana indiano —, do brâmane da índia ao marabu muçulmano, do eremita cristão à velha do exemplum de Vitry, de doña Truhafia, de D. Juan Manuel, a Perrête do pot au lait, de La Fontaine, da amoriscada serva Dominga, de Tirso de Molina, ao casal de pobretanas, da tradição oral de Reguengos de Monsaraz. É isto, mas é também mais do que isto, porque além de ser uma mulher desastrada e estouvada, Mofina Mendes foi para Gil


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