Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

Vicente o símbolo da insensatez que situa a felicidade em esperanças terrenas, quer elas procedam de riquezas materiais,

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pastores, não me deis guerra,

 que todo o humano deleite,

 como o meu pote d'azeite,

ha de dar consigo em terra

quer do augúrio alvoroçado das inovações políticas, que havia dado ao século o horror e a inquietude destes grandes acontecimentos: o saque de Roma (1527), a duplicidade antieuropeia de Francisco I, o perigo turco.

Ele o disse nestes expressivos versos, que sabem a advertência, a manifesto da política de D. João III, e a declaração de aplauso ao empenho bélico de Carlos V, “capitão do céu”, enquanto esteve distante das nossas fronteiras:

Mofina Mendes

sessego não alcança,

não sei que maleita a toma.

 Ela deu o saco em Roma,

E prendeu elRei de França;

agora andou com Mafoma

e pos o Turco em balança.

Quando cuidei que ela andava

co' meu gado onde sohia, pardeus!

ela era em Turquia,

e os turcos amofinava,

e a Carlos Cesar servia.

 Diz que assi resplandecia neste capitão do ceu

a vontade que trazia,

que o Turco esmoreceu,

e a gente que o seguia.

Receou a guerra crua

que o Cesar lhe prometia;

entances per aliam via

reverte sunt in patria sua

 com quanta gente trazia.

A análise breve do belíssimo apólogo põe agora a claro que ele é um exemplum, com a função que os pregadores atribuíam a tais composições.

É-o pela origem, pela estrutura e pela intenção.

Pela origem, por ser indiscutível a sua filiação remota no avadana indiano, embora se discuta qual dos “exemplos” medievais dele derivados serviu de fonte próxima e direta.

Pela estrutura, que é a do exemplum medieval, Gil Vicente legou--nos, como ninguém mais, o tesouro copioso de observações demográficas e caracterológicas relativas às camadas e tipos da sociedade portuguesa do seu tempo, pelo menos dos que mais se prestavam à mofa e à sátira; mas a sua Mofina Mendes é um símbolo, e não apenas a mulher estavanada cuja imaginação prefiguradora do futuro lhe gera a euforia vital da felicidade, que ela desperdiça perdulária e torrencialmente no jogo fictício das ilusões e no rodopio dos gestos expansivos e desastrosos.

Finalmente, pela intenção, por ser transparente o intuito moral na oposição das ilusões terrenas às certezas da Fé.

A conceção do exemplum, que as artes praedicandi recomendavam e os pregadores, especialmente franciscanos, normalmente utilizavam, está, pois, subjacente ao apólogo da Mofina Mendes. Gil Vicente transmitiu à velha historieta o alor personalíssimo do seu génio poético, da sua experiência pessoal com labregos, da sua índole terrantês, da sua sensibilidade de católico, do seu anelo político, — mas não despojou a sua criação do atavio predicante do exemplum.

Deu assim mais um testemunho da sua formação intelectual e do perfeito conhecimento da função do “exemplo”, cujo termo, aliás, ocorre no seu vocabulário.

As observações e considerações que acabámos de expor não comportam uma conclusão. Sugerem-na, solicitam-na porventura, mas não a autorizam por ser demasiado restrito o campo de indagação.

Demais, não nos moveu o intento de formular um juízo global acerca de Gil Vicente: pretendemos apenas mostrar que para além do dédalo intrincado da biografia, da maranha de dificuldades vocabulares dos Autos, da selva densa de problemas histórico-literários, da confusão de perspectivas de numerosos pontos de vista, há o terreno pouco explorado das ideias vicentinas, e que este terreno pode ser pesquisado quer na mira da evolução do espírito de Gil Vicente, do Auto da Visitação, em 1502, à Floresta de Enganos, em 1536, quer na averiguação do comportamento que ele tomou perante alguns problemas de sempre e de algumas questões e estimativas epocais do seu tempo.

Foi este último critério que desejamos aplicar nas páginas que aqui ficam e que representam um incidente, talvez passageiro e sem continuidade, na nossa jornada por algumas cumeeiras da cultura portuguesa.

Limitadas no âmbito e curtas no horizonte, não autorizam — voltamos a dizê-lo — uma conclusão, mas inculcam, não obstante, algumas hipóteses de trabalho que se nos afiguram dignas de ser submetidas à prova dos factos criticamente estabelecidos e, para tudo dizer em pouco, à fieira da explicação científica. Essas hipóteses são múltiplas e de vária índole, mas podem condensar-se nas seguintes:

a) Gil Vicente foi indivíduo de ilustração variada.

Na sua mente confluíram as três vias que concorrem para a formação e ilustração do espírito: os dotes naturais, de nascença, a aprendizagem, adquirida, e a experiência pessoal resultante da convivência com meios e camadas sociais diversas.

Discriminar o volume dos três cursos concorrentes será, porventura, a síntese de numerosas análises; cumpre, porém, partir desta hipótese como guia e meta da investigação.

b) Gil Vicente fez estudos regulares.

O estudo das fontes da sua obra pode ajudar a esclarecer a extensão do seu saber e, talvez, alcance inculcar a escola e o país em que estudou: se só em Portugal, se em Portugal e em Salamanca, e ainda se após alguns anos em Salamanca, frequentou Paris, embora durante menos tempo e com menor assiduidade.

Não se lograram ainda elementos que permitam um juízo sólido sobre a formação intelectual de Gil Vicente. Externamente, as pesquisas de arquivos não revelaram qualquer documento esclarecedor; e internamente, pelo exame intrínseco do que escreveu, os factos criticamente estabelecidos, que aliás são poucos em relação à grandeza da obra e à multidão e complexidade dos problemas, também não consentem ainda uma construção coerente e consistente.

A mais notável sondagem no saber de Gil Vicente pertence a D. Carolina Michaëlis, cujo valor corre parelhas com as penetrantes inquirições sobre o vocabulário vicentino de Ramón Menéndez Pidal e de Dámaso Alonso, sem esquecer, como cumpre, as observações científicas de Maximiano Lemos e de Rocha Brito, as interpretações morais de Francisco Elias de Tejada Spínola, as valorações estéticas de Afonso Lopes Vieira, as correlações histórico-literárias de Paulo Quintela, as intuições de Teófilo Braga, cuja precipitação nem sempre lhes fez perder o dote talentoso da clarividência.

A douta Mestra submeteu a exame crítico as frases latinas que ocorrem na obra de Gil Vicente. A Nota Vicentina que lhes dedicou é modelo acabado de investigação histórico-crítica e permanente lição de “ciência das letras”, pela clareza e delimitação do assunto, pela severidade do método e pelo espírito de objetividade; mas propõe algumas ideias gerais que cremos deverem ser submetidas a revisão, com mais amplo sentido de contemporaneidade histórica e renovada indagação de diversa ordem de factos.


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