Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

No que escreveu, como aliás em todos os escritores de raça, a atenção pode incidir sobre uma multidão de temas, que a comodidade é levada a coordenar sob os liames da forma, da intenção e da substância.

A forma isto é, o carácter do estilo, que não o molde em que o vazou —, é de Gil Vicente e de mais ninguém, como é sua e só sua a intenção e carga emotiva que nela verteu. Apontam-se a uma e outra modelos e incentivos, mas o seu génio literário tão bem os fundiu no crisol da originalidade, que tudo o que lhe saiu da pena, o verso lírico, de inigualável beleza simples, como o apodo satírico, de chocarreira comicidade, tem a sigla airosa da espontaneidade, sem o fartum do suor, da afetação, ou da subserviência.

Se o estilo, a carga emotiva, a vibração poética, o enlevo lírico, a sagacidade e fundura da observação, a alacridade do riso, irrompem do recesso mais pessoal de Gil Vicente, o vaso e o suco das ideias nem sempre lhe pertencem com igual propriedade. Encontrou-os vigentes e mais ou menos viçosos; por isso o estudo da atividade literária de Gil Vicente implica, dentre outras consequências, uma atitude metodológica de correlação com os géneros literários cultivados em Portugal, em Espanha e em França, e com os sentimentos, as crenças, as ideias, as estimativas e os valores do seu tempo, e em especial da sociedade donde saiu o auditório dos seus Autos. Se todo o artista carece do alento do seu público, ao dramaturgo, como ao orador, o alento tem de se robustecer até ao volume denso do aplauso, dado o alicerce e a vibração social das tábuas do palco. Sem a reconstituição do sentir do “púlpito” para o qual Gil Vicente escreveu não é, pois, possível compreendê-la sem a apreensão do pensamento que ele exprimiu pela linguagem da vida ativa, e só ativa, isto é, a linguagem própria do homem de pupila atenta às solicitações do Mundo e que não tem tempo nem feitio para se propor e meditar problemas no recolhimento da solitude.

A aplicação do método, de si claro e prometedor, importa dificuldades várias. A primeira procede da indeterminação das fontes literárias de Gil Vicente, que nunca patenteou a origem das suas ideias com a franqueza com que deu asas à expansão dos sentimentos. Contam-se pelos dedos as escassas referências a leituras diretas, designadamente na Comédia de Rubena (1521), no passo em que a alcoveta Beata se propõe completar a educação religiosa de Cismena com a leitura do Cárcel de amor, de Diego de San Pedro, e do Peregrino Amador, em cujas páginas radicam algumas das conceções de Gil Vicente acerca da mulher e do casamento e a cuja luz deve ser lido, em parte, o Auto da Sibila Cassandra, sem esquecer, como é óbvio, as fontes de onde procederam mais proximamente as correntes misóginas e feministas da Península quatrocentista: o Corbaccio e o De claris mulieribus, de Boccaccio.

É óbvio, porém, que a escassez das citações diretas e francas, não conduz, sem mais exame, à conclusão de Gil Vicente haver extraído de si próprio o fundo e a forma de toda a sua obra. Não possuiu, evidentemente, o saber vasto de um Camões nem a especialização de um André Falcão de Resende (t 1598), que iniciou entre nós a poesia científica ao pôr em verso na Microcosmografia e Descrição do Mundo Pequeno que é o Homem as conceções anatómicas e fisiológicas de Galeno; mas erraria quem não visse na estrutura de alguns escritos vicentinos, desenvolução dos seus temas e na substância dos seus ditos sentenciosos e dos seus juízos críticos, a influência de leituras, senão de estudos prévios, já que nos escapa inteiramente a das conversações e estímulos pessoais.

Perante a obra literária a atitude crítica primacial deve, naturalmente, ser ditada pela sensibilidade literária. Só ela permite o objetivo supremo da crítica, que é a compreensão e a valorização estética; porém, quando se trata de um poeta como Gil Vicente, que foi literato sem dar por isso e tão poeta que “nunca deja de hacer pasar por los más abjecto y horripilante un rayo de la luz de lo ideal”, como disse Menéndez y Pelayo, cujo espírito, por mais livre que o imaginemos, se não podia desprender da Corte para a qual se representavam os seus Autos e Farsas, cujas ideias foram as ideias vigentes na roda palaciana e cuja pena deu por vezes expressão estética a temas que lhe foram propostos, o método puramente literário torna-se insuficiente.

Há, assim, que ver Gil Vicente na plenitude da pessoa, na correlação do tempo, nas circunstâncias epocais dos seus Autos, na estrutura mental que lhes é subjacente, na técnica discursiva que o desenvolvimento do tema implicava segundo o gosto e a cultura coetâneas. Tente-mos, pois, à luz deste ponto de vista a compreensão dos sermões de Gil Vicente, talvez a parcela da sua obra onde mais ressoa a formação de predicante medieval e melhor se acentua a estrutura do seu saber. É um parágrafo da história das ideias que merece as horas de aplicação.

A eloquência sagrada da Idade Média, sobretudo após a fundação das ordens predicantes, teve, como a poesia trovadoresca, regras e preceitos que os pregadores respeitavam com rigorosa observância. Não faltaram, por isso, as artes praedicandi ou concionandi, tendentes a ensinarem a “técnica do sermão”, no preciso dizer do Srir Etienne Gilson.

Como peça “tecnicamente” organizada, o sermão consistia na aplicação de certas regras e processos em ordem à consecução de um fim, pelo que cumpre, logicamente, distinguir o fim dos processos.

O fim é óbvio: a edificação moral e religiosa. É o desiderato essencial, a alma do sermão, na definição de Alain de Lille (-1- 1202), o doutor universal, autor da famosa e assaz divulgada Summa de arte praedicatoria: a prédica é o ensino público e coletivo da boa conduta e da fé, que se apoia na razão, mergulha nas fontes da autoridade e tem por fim a instrução dos homens.

A maneira de obter este fim constitui o objeto da “técnica” ou ars do sermão, a qual, embora se apresente com variantes e, sobretudo, com diverso desenvolvimento nos sucessivos tratadistas, obedeceu estruturalmente ao esquema, que João de Gales (-1- 1302) traçou na sua Ars praedicandi: a pregação consiste, depois da invocação do auxílio divino, em expor um tema, dividindo-o em partes que sejam concordantes, em ordem ao conhecimento da doutrina católica e ao ardor da caridade.

Daqui as seguintes partes do sermão: tema, protema, divisão do tema e desenvolvimento das ideias.

O tema (thema) é sempre constituído por um texto da Escritura, servindo a um tempo de ponto de partida e de fundamento. Como diz Gilson, “é no tema que todo o sermão deve achar-se virtualmente pré-formado. Cumpre, pois, partir desta conceção inicial, se se quiser compreender em que consiste o trabalho do orador sagrado: a sua tarefa própria está em extrair, para sustento das almas que o ouvem, toda a substância contida num texto da Escritura e de mostrar que o ensina-mento do seu sermão deriva necessariamente do texto proposto”.

Ao tema segue-se o protema (prothema), isto é, a súplica do auxílio divino. De desenvolvimento variável, devia assentar, como o tema, num texto da Escritura, e o seu fim consistia, como diz Gilson, em “conduzir o auditor do tema proposto à oração que deve preceder o começo do sermão propriamente dito”.


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