Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

Firmando-se na circunstância, realmente concludente e “irrespondível”, de se encontrar tão-somente uma única citação clássica — o verso de uma Egloga de Virgílio — num conjunto de trezentas e tantas citações litúrgicas, e esclarecida pelo resultado da análise destas citações latinas, concluiu logicamente que Gil Vicente fora “sabedor do latim do Breviário”, “não dominava a língua comum das ciências, não tinha faculdades criadoras como latinista” e que nesta qualidade, “conhecedor apenas do latim das Horas, apenas vivia de criações alheias” "°.

Esta foi a sua primeira conclusão, que é, realmente, uma conclusão criticamente apurada e cientificamente estabelecida. O espírito da saudosa Mestra, porém, ansioso de atingir mais alto e vasto juízo, inferiu desta conclusão uma outra que a nosso ver já não possui o mesmo valor lógico nem a mesma densidade de exatidão.

Partindo daquela conclusão, combinou-a depois com o facto de não haver uma só notícia “a respeito de estudos regulares, quer de Direito, quer de Teologia, absolvidos em Lisboa, Salamanca, Paris, Lovaina, Bolonha, Pádua, Siena”, nem tão-pouco qualquer “reminiscência, em obras suas ou alheias, de tais cursos regulares, indispensáveis ao latinista, e em regra assaz extensos e laboriosos”; donde ter concluído em segunda instância que “o mais indicado é julgá-lo endoutrinado por um bondoso padre de aldeia, entusiasmado com os múltiplos talentos do genial rapaz e a sua ânsia de saber e aprender tudo”.

Se explicar cientificamente consiste em salvaguardar todos os factos conhecidos e todas as relações que eles entre si mantêm e implicam, esta conclusão não parece bem fundada, visto não abranger o resultado a que conduz a análise dos sermões —, ou por outras palavras, o conhecimento que Gil Vicente mostrou possuir da arte parenética medieval. Se este conhecimento só pode explicar-se cabalmente em quem adquiriu, pelo menos, os rudimentos da formação sacerdotal, é óbvio que a hipótese de estudos regulares é a hipótese mais admissível.

É certo que nem sequer é possível indiciar a escola que Gil Vicente frequentou, os mestres que o ensinaram e até onde levou escolaridade; mas cremos ter mostrado que deu expressão a temas religiosos que implicavam conhecimentos mais ou menos particularizados. Demais, Gil Vicente usufruiu socialmente uma posição de prestígio intelectual que lhe permitiu falar, ser ouvido e acatado pelos frades de Santarém, e dirigir-se ao Rei como defensor de generosas conceções ético-sociais.

c) A índole e o conteúdo das ideias de Gil Vicente são de teor medieval.

A conjuntura histórica em que Gil Vicente viveu colocou-o na fronteira da Idade Média e da Renascença. Pela formação, pela índole, pelas formas da atividade, e pelo saber, a hipótese mais consistente é a que o situa intelectualmente no mundo da sensibilidade e das ideias medievais.

Deixamos indicados alguns factos e algumas considerações cuja origem e feição inculcam irresistivelmente a medievalidade do pensamento vicentino. A contraprova disto encontra-se na ausência de ideais humanísticos e na maneira como Gil Vicente deformou os poucos temas clássicos que ocorrem na sua obra.

Levaria longe a investigação pormenorizada do assunto; por isso, atentaremos apenas no testemunho mais característico, revelador e persuasivo: o mito helénico da Sibila Cassandra.

Por duas vezes, com o intervalo de vinte anos, utilizou Gil Vicente o nome, que não o mito, da famosa Sibila: a primeira, em 1509 (?), no Auto da Sibila Cassandra, onde ela aparece como personagem central, mais tarde, no Auto da Mofina Mendes, onde é referida como intérprete da visão do César Augusto.

Naquele Auto, Cassandra não apresenta nenhum elemento constitutivo do mito helénico, designadamente a filiação de Cassandra, a origem do seu amaldiçoado dom profético, a perseguição de Ajax, a vingança de Agamemnon, nem tão-pouco dá indícios de Gil Vicente ter atentado em qualquer das transfigurações que ele adquiriu pela imaginação de Virgílio, de Ovídio, de Séneca, e com a representação artística de ceramistas e debuxantes.

Não descobre nenhum episódio da vida e dos vaticínios da profetiza, e só na repulsa do casamento proposto por Salomão e na descrença de que ela viesse a ser a mãe do Messias é possível entrever o eco longínquo e apagado do desdém de Cassandra pelo amor de Apolo.

A Exortação da Guerra, de 1513, do qual o Auto da Sibila se pode considerar contemporâneo, mostra que Gil Vicente não desconhecia os nomes de Príamo e de Hécuba, os progenitores de Cassandra, mas este facto não afeta o juízo de que o mito não foi utilizado com o saber de um humanista nem com o espírito de um renascente. A Cassandra do Auto não tem mesmo a mais leve feição de uma sibila: é uma insensata presunçosa que não quer casar porque se imagina predestinada a ser a mãe do Salvador e cuja insensatez só cede à presença do Menino-Deus no Presépio.

Salta à vista que Gil Vicente não conhecia o mito helénico como conhecia os profetas bíblicos, de cujo saber logo deu mostra em 1502 com o “letrudo” Gil Terrón do Auto Pastoril Castelhano e cona o ermitão do Auto dos Reis Magos (1503), e posteriormente no Auto dos Quatro Tempos (1516?), no Sumário da História de Deus (1526-1528), no Diálogo sobre a Ressurreição (1526-1528) e no Auto da Mofina Mendes (1534).

Do mito helénico, a bem dizer, apenas manteve o nome da profetiza, porque a sua sensibilidade de cristão e a índole medieval da sua imaginativa de tal modo o transfiguraram que é na Idade Média que devem procurar-se as fontes e incentivos da sua conceção de Cassandra.

O processo transfigurador atingiu todas as figuras do Auto, pois as sibilas Erutea (Eritreia), Peresica (Pérsica) e Ciméria são tias de Cassandra, Moisés, Abraão e Isaías, seus tios, e Salomão, pretendente à mão de Cassandra, é um zagal. “Nada, à primera vista, más extravagante que este ensuefio ó devaneo dramático, escreveu Menéndez y Pelayo, en que aparecen revueltos la Mitologia. y la Ley Antígua, lo historial y lo alegórico, lo sacro y lo profano, agitándose todas las figuras en una especie de danza fantasmagórica”.

Psicologicamente, a transfiguração do mito de Cassandra radica na constituição imaginativa de Gil Vicente. Sob este aspeto é obra sua, e com razão D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos falou no “seu divino direito de criador”. Cassandra, porém, como personagem central do Auto, exprime certas ideias e toma certas atitudes que não pertencem exclusivamente a Gil Vicente.

Levaria longe apurar este assunto, bem digno das horas de atenção, porque, se literariamente há interesse em penetrar na génese de uma obra que assinala, “se no me engario, como escreveu Menéndez y Pelayo, el primer germen del auto simbólico, que por excelencia Ila-mamos calderoniano” o interesse não é menor sob o ponto de vista da história das ideias morais, pela posição que Gil Vicente tomou no debatido problema do casamento. Voltemos, porém, ao Auto da Mofina Mendes.

Cassandra também não mostra neste Auto qualquer feição do mito grego: é talvez mesmo uma dama romana que o Poeta apresenta como intérprete e vidente:

Cassandra del rei Priamo

mostrou essa rosa-frol [a Virgem Maria]

com um menino, a par do sol,

a Cesar Octaviano

que o adorou por Senhor.


?>
Vamos corrigir esse problema