Há que distinguir duas coisas nestes versos: a visão do César, e a sibila que a interpretou.
A visão constitui a lenda famosa que pode designar-se de Ara Coeli, a qual simboliza o primeiro ligame de Roma ao Cristianismo.
Consiste a lenda na visão que o Imperador César Augusto teve de um halo em volta do Sol, no qual estaria uma mulher com um menino ao colo. Chamando uma sibila, disse-lhe esta que a visão anunciava a vinda do Deus verdadeiro, pelo que resolveu recusar a apoteose que o Senado lhe oferecia e elevar um altar ao Deus que se lhe havia revelado na visão do menino. Os artistas italianos do pré-Renascimento e da Renascença não se cansaram de tratar a lenda, que tem nas igrejas romanas de Ara Coeli, de Minerva, da Paz, do Pópulo e da Consolação, na Capela Cistina e em dependências do Vaticano, algumas das suas mais belas expressões artísticas.
Gil Vicente aludia, pois, a uma lenda assaz divulgada no seu tempo, e que, pelo menos em França, havia dado tema no século XV ao Mystère d'Octavien et la Sybille.
Não é talvez possível determinar com exatidão a maneira como ela chegou ao seu conhecimento, afigurando-se-nos como hipótese mais consistente que a tivesse colhido no passo da por então divulgadíssima Legenda aurea sanctorum, de Jacobus Voragine, que reproduzimos em apêndice.
Este texto, que é capital, não particulariza o nome da sibila, cuja interpretação liga simbolicamente os destinos da Roma eterna aos do Cristianismo nascente. Daí maior liberdade à criação e às preferências dos artistas, que, pelo geral, na Itália, deram a primazia à Sibila Tiburtina. Gil Vicente, ao invés deles, personificou a explicação da visão de César em Cassandra, equiparando-a deste modo, como notou D. Carolina Michaëlis, “às verdadeiras Sibilas tradicionais, ou mesmo sobreposta a todas, como anunciadora do Nascimento ao César”: E pergunta: “Onde estará registada essa lenda?”.
A pergunta persiste sem resposta há vinte e cinco anos, e para a esclarecer foram também baldados os nossos esforços.
Algo deve ter suscitado no espírito de Gil Vicente a preferência pela sibila grega; mas fosse o estímulo da leitura, o acaso de uma conversação ou a invenção pessoal, é de notar que uma das ciganas da Farsa das Ciganas (1521) se chama Cassandra —, o que parece mostrar que o Poeta associara a este nome não propriamente o dom da profecia, mas o de interpretar visões e sinais naturais, a par da leitura da buena dicha.
Com ser rápida, esta sondagem mostra claramente que o espírito de Gil Vicente não chegou a atingir o ideal dos renascentes: compreender e sentir a Antiguidade em si mesma, no que a particulariza e lhe dá feição irredutível. Nasceu e permaneceu na Idade Média, tão vigorosamente que as poucas contaminações clássicas sofreram a deformação imposta pela índole da sua sensibilidade e pelo vinco da sua formação intelectual.
Ao que parece, nenhum Padre da Igreja gravou no seu espírito tão funda influência como Santo Agostinho; e na teologia escolástica, com ser legítimo admitir a influição de algumas ideias tomistas, especialmente da Summa contra gentiles, tudo leva a crer que deu primazia à escola franciscana. Fossem, porém, quais fossem as fontes do doutrinamento, o seu Catolicismo permaneceu firmemente dogmático e eclesiástico, e a sua apologética, como a sua sensibilidade e as suas ideias, moveram-se somente no âmbito das conceções medievais, sem o menor contágio do estetismo formalista de renascentes, do ideal oratório de ciceronianos, da erudição clássica de humanistas e da exegese de filólogos e de Reformados.
APÊNDICE
SOBRE AS FONTES DO AUTO DA MOFINA MENDES
No Auto da Mofina Mendes há a considerar duas espécies de fontes: as gerais, relativas à estrutura e efabulação da peça, e as particulares, mais ou menos explicativas de “passos”, isto é, de cenas, de ideias, de personagens e de alusões.
As fontes gerais procedem das narrativas De annuntiatione e De nativitate Domini. São vários os respetivos textos, podendo admitir-se a hipótese do confronto de todos eles permitir apontar o que Gil Vicente utilizou de preferência. Cremos, não obstante, que não pôs de lado os seguintes:
—Catalogus sanctorum: vitas: passiones: et miracula commodis-sime annectens: Ex variis voluminibus selectus: quem edidit Reuerendissimus in Christo pater dominus Petrus de Natalibus V enetus: Dei gratia episcopus Equilini simulque et cura non vulgari: et emaculate quantum fieri potuit prelis nostris indidimus.
Prostant apud Nicolaum petit et Hectorem penet, Lugduni, M.D. XXXIIII; e
— A Legenda aurea sanctorum, de Iacobus Voragine, muito editada, e de que utilizamos as edições: Opus aureum et legende insignes sanctorum sanctarumque cum hystoria lombardica... ed. por Constantin Fradin, Lion, 1526, e Legenda aurea sanctorum,... Madrid, 1688.
As fontes particulares são, por natureza, diversificadas e dispersas.
Deixámos atrás indicadas algumas, designadamente em relação ao “passo” dos pastores e ao apólogo da Mofina Mendes; por isso, e a mero título de exemplificação, aludiremos apenas às seguintes:
a) “Passo” inicial da entrada da Virgem acompanhada de quatro “damas”: a Pobreza, a Humildade, a Fé e a Prudência.
A personificação destas virtudes é de invenção do Poeta, mas é legítimo admitir que lhe foi despertada pelas seguintes linhas do citado Catalogus sanctorum, vitas, passiones et miracula..., Lugduni, 1534, CXCiii, no cap. De nativitate sancte Marie Virginis:
“...Desponsatam autem virgine ipse quidem in ciuitatem suam Bethleem rediit: domum suam dispositurus. Virgo autem Maria cum quinque virginibus coeuis suis: quas ob ostensionem miraculi a sacerdote acceperat in socias ad domum parentum in Nazareth reuersa est. Nomina virginum erant hec: Rachel: Sephora: Susanna: Abigera et Agabel: quarum omnium Maria etate minor era: quibus data sunt operandum pro vestibus templi sericum: hiacynthus: coccinus: byssus: linum et purpura: ut quelibet ex uno horum vestem contexeret. Cum ergo iactatis sortibus que ipsarum quid horum operari deberet: et Maria sorte purpuram ad velum templi domini accepisset: alie virgines ei dixerunt admirantes: quod cum ipsa minor omnibus esset: purpuram que ad reginas operari pertinet accepisset. Ideoque congruum erat quod ipsa regina virginum vocaretur. Et exinde quasi diuino instinctu ceperunt illam reginam virginum appellare. In diebus autem illis eidem Gabriel angelus oranti apparuit: et de ea nasciturum Dei filium nunciauit: ut dictum est supra in eius annunciatione octaua kalen. aprilis. Hec Hieronymus”.
b) Interpretação da visão de “César Octaviano”.
O “passo” inicial do Auto começa, de harmonia com a legenda, com a referência a alguns sinais proféticos da vinda do Messias e da virgindade de Maria. Nem todos, porém, se encontram nas narrativas De nativitate Domini que vimos, mas algumas encontram nelas a respetiva fonte, como a seguinte, cujo assunto tem alguma bibliografia:
Fé Cassandra del-rei Priámo
mostrou essa rosa frol
com hum menino a par do sol
a Cesar Octaviano
que o adorou por Senhor.
c) Da Legenda aurea sanctorum, de Voragine:
“Octavianus insuper Imperator (ut ait Innocent. Papa 3.) universo orbe ditioni Romanae subjugato, in tantum Senatui, ut eum pro Deo collere vellent. Prudens autem Imperator mortalem se intelligens, immortalitatis nomen sibi voluit usurpare: Ad illorum vero importunam instantiam, Sybillam Prophetissam advocat, scire volens per eius oracula si in mundo maior eo aliquando nasceretur. Cum ergo in die Nativitatis Domini Consilium super hac re convocasset, et Sybilla sola in Camera Imperatoris oraculis insisteret; in die in media, circulus aureus apparuit circa solem, et in mecho circuli virgo pulcherrima, stans super aram, puerum gestans in gremio. Tunc Sybilla hoc Caesari ostendit. Cum autem Imperator, ad praedictam visionem plurimum admiraretur, audivit vocem dicentem sibi: Haec est Ara Dei Coeli. Dixitque ei Sybilla: Hic puer maior te est, et ideo ipsum adora. Eadem autem camera in honore Sancte Mariae dedicata est. Unde usque hoclie dicitur Sancta Maria Ara Coeli. Intelligens igitur Imperator quod hic puer maior se erat ei thura obtulit, et Deus de caetero vocari recusavit.




