Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

Vejamos o que cada uma destas peças diz e sugere.

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O primeiro sermão, diz a respetiva didascália, foi “feito à cristianíssima Rainha D. Leonor, e pregado em Abrantes ao muito nobre Rei D. Manuel, primeiro do nome, na noite do nascimento do Ilustríssimo Infante D. Luís”, em 3 de Março de 1506.

Com razão escreveu Brito Rebelo não se “perceber a oportunidade de tal sermão em semelhante conjuntura”, pois é estranhável, quer se considere como manifestação de regozijo da Corte, quer como expressão de atividade literária.

Desta ainda pode pensar-se na voga que a pregação alcançou no século XV e no sentido popular que adquiriu, a ponto dos sermões constituírem manifestações apreciadas nos ajuntamentos de feiras, como a de Estrasburgo; porém, daquela não se descobre uma razão plausível.

É, pois, de crer que tenham ocorrido circunstâncias cujo conhecimento hoje se nos escapa, e que Gil Vicente tivesse encontrado incentivo, senão aplauso, especialmente da parte da 'Rainha Velha, D. Leonor, viúva de D. João II, a sua “melhor, mais afetiva e efetiva” protetora, no juízo de Braancamp Freire e de cujos sentimentos religiosos se não pode isolar a obra vicentina enquanto ela foi viva, como mais tarde se não pode desprender também do ambiente palaciano e da política de D. João III, especialmente no desígnio de reformação monástica.

Fossem quais fossem as circunstâncias e razões que levaram Gil Vicente a escrever um sermão para regozijo da Corte, e a recitá-lo, como tudo indica, com veste eclesiástica, é manifesto que o redigiu respeitando a Ars praedicandi e insuflando-lhe a vibração e a veemência da sua religiosidade.

O tema que se propôs explanar é de densa concisão: Non volo, volo, et deficior, e segundo a Ars exarou a autoria de que procede: Habentur verba ista originaliter in pariete istius aulae, quae scripsit aliquis stultus.

Pensou D. Carolina Michaëlis que o tema não fora de livre invenção ou escolha de Gil Vicente, admitindo que lhe tivesse sido “quase imposto... por detratores que duvidavam da sua originalidade, corno posteriormente o provocaram a tecer uma comédia em volta do provérbio Mais quiero asno que me leve que cavalo que me derrube A conjetura não parece consistente, porquanto o Sermão de Abrantes não é compaginável à Farsa de Inês Pereira (1523): nesta, Gil Vicente tinha de patentear os recursos do seu génio inventivo e de fazer obra “de folgar”, naquele, pelo contrário, pretendeu glosar um tema segundo as regras da Ars praedicandi e de fazer obra séria, de militante intenção ético-religiosa. Se foi um “estulto” que rabiscou na parede da sala do paço de Abrantes as palavras do tema, Gil Vicente não viu nelas um testemunho de estultícia, mas de sapiência; e além disto, os “detratores” a que ele alude no prólogo do Sermão não eram social e intelectualmente idênticos aos “certos homens de bom saber” que “duvidavam... se o autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores”, como diz a didascália da Farsa de Inês Pereira.

Em 1523, Gil Vicente encontrara-se perante a opinião de uma roda de críticos da capital, que punham em dúvida a sua capacidade inventiva e originalidade literária; agora, em 1506, tratava-se de protestos que saíam das sacristias de Abrantes, senão da própria capela real, e verberavam o ousio de um leigo que não tinha escrúpulo em festejar o regozijo da Corte com um sermão e em o recitar com vestes clericais. A pregação, que havia sido um dos principais deveres do munus episcopal, tornou-se depois do Concílio de Latrão, de 1215, e da fundação das ordens predicantes, uma prerrogativa do clero secular, de dominicanos e de franciscanos. Se este era o sentir comum, podia porventura tolerar-se que um leigo fizesse folgar com a norma do que servia para inflamar os corações na palavra do Senhor?

Outro sentido não têm, a nosso ver, as seguintes outavas do antelóquio — simples peça explicativa, independente do sermão —, nas quais Gil Vicente reconhece que ultrapassava os limites da sua “jurisdição” laica, — é de recordar que dez anos depois o V Concílio de Latrão submetia a pregação à vigilância dos bispos — e com saborosa ironia oferece aos seus detratores a “licença” de serem néscios, “com reverência”, toda a vida e em qualquer parte, em troca da de o deixarem ser louco por uma só vez, naquela ocasião:

Antes de aqueste muy breve sermon,

placiendo à la sacra ciencia divina,

 muy receloso de gente malina

a mis detratores demando perdon.

Los quales diran con justa razon:

Pusose el perro en bragas de acero:

daran mil razones, diciendo que es yerro

 pasar los límites de mi jurdicion.

A estos respondo, que me den licencia

aquesta vez sola ser loco por hoy,

y toda su vida licencia les doy

y que puedan ser necios con reverencia.

Y mas les suplico hayan paciencia,

que esta locura no pasa de aqui;

Y yo ge la doy que aqui y alli,

lo scan por siempre,

que es mas preminencia.

Vista a esta luz, a repulsa seria ainda justificada se o “sermão” não fosse jocoso, isto é, fosse proferido com intenção séria, obedecesse às regras da Ars praedicandi e visasse objetivos parenéticos. O apelo ao direito de dizer sandices pode interpretar-se tanto no sentido de uma justificação pessoal como no do acatamento à liberdade de disparatar (sotie) inerente à índole dos sermões jocosos (sermons joyeux), de que este preâmbulo é, de algum modo, exemplificação; no entanto, qualquer que seja a interpretação, o facto relevante é que este sermão vicentino, como escreveu Brito Rebelo, “se não tem relação com a solenidade que se celebrava, tem-na com a vida de todos os dias, de todos os tempos, e de toda a Humanidade ainda a mais civilizada”.Só nas outavas acima transcritas, que servem de preambula ao sermão e lhe são completamente independentes, se encontram conceitos impróprios da dignidade do púlpito, pois o sermão propriamente dito é todo ele conforme às regras e fins da predicação, na estrutura como na intenção, nas ideias como nos sentimentos.

A estrutura, com efeito, obedece às regras da Ars praedicandi, sendo o próprio Gil Vicente quem o declara explicitamente nos seguintes versos:

Y porque sigamos la regia y compas

de nuestro sermon, segun su manera.

Nesta conformidade, estabelece inicialmente o tema, seguindo-se-lhe o protema, a divisão do tema, o desenvolvimento das ideias contidas nas suas três partes, e a conclusão.

O tema — Non volo, volo, et deficior— diz tê-lo colhido numa parede do Paço de Abrantes: Habentur verba ista originaliter in pariete istius aulae, quae scripsit aliquis stultus.

Esta pretensa origem, anónima e insensata, priva o tema de qualquer autoridade, essencial na estimativa crítica da meia-idade, mas procedendo assim, Gil Vicente significou que não maculava o ministério do púlpito, pois o tema do sermão devia ser extraído da Escritura e nutrir a parénese e a edificação das almas.

Pela origem, manifestamente intencional, pois da cabeça de um insensato jamais poderia sair tão conceituoso pensamento, o tema furta-se à regra da Ars praedicandi; porém, pela função, obedece-lhe inteiramente, dado que as palavras que o constituem exprimem os conceitos nucleares de que o sermão vai ser a explicitação.


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