Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

b) No tema —Quid facebat Deus, antequam faceret codum et terram— dos capítulos X e XII do Livro XI das Confissões, no qual o Bispo de Hipona desenvolveu as suas personalíssimas e profundas reflexões sobre o Tempo.

Dos dois passos é este último a fonte mais verosímil, pela circunstância de outras interpretações sugerirem que Gil Vicente leu as Confissões, notadamente a “fala” dita aos frades de Santarém, em 1531.

IV — Queda dos anjos:

O porque no hizo tal que no pecase

aquella primera celeste hierarquia.

Refere-se à queda dos anjos, cuja fonte originária é a epístola 2.a de S. Pedro, c. 2, v. 4, constituindo objeto da quaestio o tema, que assim se pode desdobrar:

Como foi possível que alguns anjos, criaturas de Deus, se revoltassem contra o Criador?

Como foi possível que Deus tivesse criado os anjos de modo tal que alguns viessem a pecar contra o seu Criador?

É de notar a propriedade da expressão celeste hierarquia, que é natural fosse por então vulgar na fala correntia e foi acreditada, como é sabido, por Dionísio Areopagita.

Não alcançámos precisar a fonte, mormente na literatura mais em voga pelo tempo de Gil Vicente. Não é, porém, de excluir a hipótese de se filiar em Pedro Lombardo, Sent., 1. II, d. XXIII (Quare Deus permiserit hominem tentari, sciens eum esse casurum) ou de remontar aos caps. XIII e XV do 1. XI do De civitate Dei, de Santo Agostinho, e, sobretudo, ao cap. XXVII (De peccatoribus et angelis et hominibus, quorum perversitas non perturbat providentiam Dei).

Gil Vicente não especificou nestes versos a natureza do pecado, acerca do qual a Summa aurea in quattuor libros Sententiarum... de Guilherme Altissiodorense (Paris, 1500), que teve voga entre nós, versa no 1. II a questão De peccato Luciferi utrum fuerit peccatum omissionis aut peccatum superbiae (fl. XXXVII e v.); porém, no Auto da História de Deus (1527) atribui a revolta do “muito soberbo” Lúcifer à

... sua malicia d'inveja sobeja.

V — O ser do mundo antes da criação:

No quiero dar cuenta adonde tenia

Dios este mundo antes de criado.

Gil Vicente acentua um só problema, mas as palavras implicam dois: o de Deus haver criado um só mundo, que é “este”, e o de saber qual o ser dele antes da Criação. Só este problema está explícito na intenção, mas é óbvio que aquele outro estava implícito no pensamento. Não o explicitou por lhe parecer evidente que Deus criara um só mundo, que é o da nossa experiência sensível —, aliás a opinião defendida por Santo Agostinho (De civ. Dei, VII, 9) e por S. Tomás de Aquino (Sum. Theol., p. I, q. 47, a. 3) por mais consentânea à disciplina da Fé, e por Aristóteles, no De Coelo (I, 8), como mais lógica e consistente.

O problema a que aludiu não é claro.

Podem dar-se-lhe duas interpretações:

a) O mundo criado é a expressão material da ideia de mundo existente em Deus, ou, talvez mais rigorosamente, da ideia que Deus preferiu dentre as infinitas que possuía. Sendo assim, o mundo existia como ideia na inteligência divina antes do ato criador. É a opinião de Santo Agostinho no De retract., I,3.

b) Pode considerar-se a quaestio como sumário do seguinte passo das Confissões (XI, V), de Santo Agostinho:

Quomodo fecisiti, deus, coelum et terram? Non utique in coelo negue in terra fecisti coelum et terram negue in aere aut in aquis, quoniam et haec pertinent ad coelum et terram, negue in universo mundo fecisti universum mundum, guia non erat, ubi fieret, antequam fieret, ut esset. Nec manu tenebas aliquid, unde faceres coelum et terram: nam unde tibi hoc quod tu non feceras, unde aliquid faceres? Quid enim est, nisi guia tu es?

Ergo dixisti et facta sunt atque in verbo tuo fecisti ea.

Esta segunda interpretação é mais plausível embora não apresente tão clara correspondência verbal como a anterior quaestio III.

VI — Mistério da Incarnação:

ni daros razón como es engendrado

el hijo del Padre, per ninguna via.

No quiero mover question teologal,

si otro respecto, salvo encarnar,

le hizo la humana natura tomar,

o porque no tomó natura angelical:

 ni tomar cuenta al Verbo eternal,

si cuando encarnó se apartó del Padre,

o si d'ab initio perservó su madre;

ni quiero hablaros neste original.

Estes versos contêm os problemas cristológicos implícitos no Mistério da Incarnação que Gil Vicente não queria versar. São os seguintes:

a) Como foi gerado o Filho.

Por ninguna via diz pretender “dar razon” desta geração, sendo de notar a propriedade do emprego da palavra via, que compreende tanto os caminhos da razão que discorre (via racional) como os da intuição que pressente ou alcança imediatamente, sem intermediários lógicos (via mística).

b) Se a Incarnação teve só por móbil o Verbo fazer-se Homem.

Pode considerar-se como resumo breve dos seis artigos da quaestio I (De convenientia incarnationis) da p. III da Suma Teológica, de S. Tomás de Aquino.

c) Porque não tomou o Verbo a natureza angelical em vez de se humanar.

d) Se ao humanar-se o Filho deixou de estar unido ao Pai.

e) Se a Virgem Maria foi preservada ab initio, isto é, isenta do pecado original.

Foi questão muito debatida, podendo ver-se sobre ela a q. III (An Virgo peccauerit in Adamo) do Liv. I do De Immaculata Beatae Virginis conceptione ab omni originali peccato immuni libri quatuor (Coimbra, 1617, p. 53), de Fr. Egídio da Apresentação.

Com esta maneira de dizer, Gil Vicente mostra apenas que conhecia o debate e não que tivesse dúvidas, como se depreende do Auto da Mofina Mendes (1534), no seguinte passo da Saudação do Anjo Gabriel

Nem deveis duvidar,

pois sois d'ele tão querida

e d'ab initio escolhida.

Embora este Auto seja muito posterior ao Sermão, a crença sobre que ele assenta foi constante na fé de Gil Vicente.

f) Exclusão de qualquer arrazoado sobre a Imaculada Conceição. É este o sentido do último verso, e por ele mostra Gil Vicente que não desconhecia as controvérsias do seu tempo acerca do que então era sentimento comum dos teólogos católicos e mais tarde constituiria dogma.

A exclusão não significa dúvida. De maneira alguma.

Gil Vicente foi crente enternecido da Virgem Maria, sendo a vivacidade desta sua crença uma das razões que inclinam a pensar terem sido franciscanos os seus mestres de teologia.

Na literatura religiosa coetânea é de recordar o seguinte passo da Bien aueturada virgen madre de dios toda hermosa: cõ vra gracia: ayuda e bendicion. Comiença el tractado de vuestra sancta e limpia cõcepcion 1504 (Sevilha), de Luis de las Casas: “fue altercaciõ entre los frayles menores de vna parte affirmauã la dicha cõcepcion ser sin pecado original e los frayles predicadores de la otra parte affirmauã lo contrario y el oyo predicar a vn frayle maestro solene en artes e theologia de la ordë de sant augustin tuuo la dicha cõcepciõ ser fuera de pecado original...” (f. I, c. I) 03.ca da Univ. de Coimbra,R. 60-30).

VII — Opiniões de Santo Agostinho e de Duns Escoto.

no quiero deciros especulaciones

de Santo Agostin de civitate et cetra;

no quiero de Scoto alegar ni letra,

ni quiero disputas en predicaciones.


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Vamos corrigir esse problema