Santo Agostinho foi entre nós o mais lido e citado dos Padres da Igreja, pelo menos a partir de Santo António de Lisboa de sorte que o segundo verso é o eco desta tradição. A citação é de relacionar com o religiosíssimo Auto da Alma representado em 1507, isto é, no ano seguinte à recitação do Sermão, pois Gil Vicente não só nele invoca Santo Agostinho, a par de S. Jerónimo, Santo Ambrósio, e S. Tomás [de Aquino], como “pilar” da Igreja, senão que o apresenta como interlocutor. Em toda a obra vicentina, só nestes dois escritos Santo Agostinho é referido com intenção veneranda, pois a alusão da fala inicial, “a modo de pregação”, do Auto da Mofina Mendes (1534) não está desprovida de carácter jocoso, inculcando o facto que a obra do Bispo de Hipona ocupou durante os anos de 1506 e de 1507 um lugar privilegiado nas leituras e preocupações intelectuais de Gil Vicente.
No Sermão refere apenas o De civitate omitindo do título do imorredoiro livro a palavra Dei e colocando em seu lugar et cetera. D. Carolina Michaëlis viu na substituição a necessidade do Poeta “precisar de rima para letra”, mas invertendo a relação sobre que este juízo assenta, não deve porventura ler-se em etecetera o que a palavra sempre significou?
Sendo assim, no completivo termo cumpre entender a alusão a outros escritos augustinianos além do De civitate Dei—, o que aliás a mesma insigne Mestra não podia excluir, dado que admitira que os “belos versos” do Auto da Alma “provam que Gil Vicente conhecia, além dos Sermões e das Homilias que entraram nas Lições da liturgia (como o Sermão da Vigília do Natal e dos hexâmetros dos Quindecim Signa), a Cidade de Deus (oposta à cidade terrena) e porventura o Solilóquio e as Meditações que lhe são atribuídas”.
Sem apurar se estas afirmações tão concretas têm ou não fundamento, cremos em todo o caso que Gil Vicente, como atrás mostrámos, não limitara o conhecimento da obra de Santo Agostinho ao De civitate Dei e que neste livro encontrara (ou aprendera) assuntos de reflexão, isto é, de “especulaciones”.
Deve incluir-se neste último caso o passo da fala de Moisés no Auto da Sibila Cassandra (1513?) em que afirma que o casamento foi o primeiro sacramento instituído pelo Criador):
El mismo que los crió
los casó
y trató el casamiento,
cuja fonte é o cap. XXII (De copula conjugali a Deo primitus instituta atque benedicta) do liv. XIV do De civitate Dei.
A visão histórica da Humanidade subjacente à construção do Auto da História de Deus (1527) remonta também, direta ou indiretamente, ao Da Cidade de Deus, — assim como a conceção do pecado original haver resultado de causa deficiente e não eficiente, expressa no mesmo Auto,
Adão é deitado de sau alegria,
porque por seu mal não pôde c'o bem
que Deus lhe queria,
se pode filiar em Santo Agostinho, especialmente neste passo do De civitate Dei, XII, 7: Nemo igitur quarat efficientem causam malae voluntatis: non enim est efficiens, sed deficiens, guia nec illa effectio est, sed defectio....
A alusão a Duns Scoto desperta também alguns problemas, que talvez não seja possível esclarecer cabalmente. O famoso Doctor Subtilis é referido como autoridade digna de acatamento. Coloca-o, pois, a par de S. Tomás de Aquino, que, como já notamos, “autoriza” o assunto da terceira parte do Sermão; mas, no íntimo, não lhe renderia maior consideração que ao autor da Suma Teológica?
É crível, porque embora não haja prova decisiva, o conjunto da obra vicentina parece acusar simpatia por franciscanos, respeito por jerónimos, ordem adicta como nenhuma outra à casa real e então no fastígio do seu valimento, e menos consideração pelos demais hábitos.
Finalmente, cumpre ainda atentar nas palavras — disputas en predicaciones, que manifestamente tinham a seu ver significados diversos. E com efeito, tinham-no, quer pelo local adequado, quer pelo sentido e função.
Quanto ao local, a escola era o lugar próprio da disputa, e o púlpito, o do sermão; e quanto ao sentido e função apreendem-se com clareza se se tiver presente que o mestre teólogo da Idade Média tinha o tríplice encargo de ler (lectio), isto é, de explicar textos, de disputare, isto é, de defender e argumentar, podendo a disputa ser ordinaria e quodlibelica, e pregar (praedicare). A prédica constituía o remate da formação clerical, para a qual a lectio e a disputatio como que serviam de propedêutica. É o que a didática medieval preceituava, e foi claramente indicado por Pedro Cantor (?) no já citado Verbum abbreviatum:
Lectio... est quasi fundamentum … Disputatio quasi paries est in hoc exercitio et aedificio…Praedicatio vero, cui subserviunt priora, quasi tectum est tegens fideles ab aestu, et a turbine vitiorum.
Discriminando prédica de disputa, com o manifesto intuito de reforçar o propósito de não se deter na exposição de autoridades, ainda que dessem pelo nome de Duns Escoto, Gil Vicente estava com a boa tradição docente e mostrava possuir a noção exata do objetivo do sermão, cujo sentido adiante acentuará com mais vigorosa e densa intenção.
VIII — Eternidade do Mundo:
No quiero deciros las opiniones
de los que hacian el mundo ab eterno.
Pode pensar-se que esta quaestio não tinha na mente de Gil Vicente uma origem filosófica, isto é, derivada da interpretação averroísta da conceção aristotélica da matéria primeira, mas escriturária, isto é, relacionava-se com a interpretação do primeiro versículo do Génesis.
Não conseguimos apurar a fonte, que se não encontra nos comentários de Santo Agostinho a este livro.
IX — Extensão do poder absolutório do Papa:
Ni alegar texto antigo ni moderno,
si el Papa si puede dar tantos perdones.
Ë de crer que Gil Vicente não tivesse em vista um tema teológico nem a prática das indulgências, mas o poder disciplinar do Pontífice. Sendo assim, cumpre interpretar os versos como alusivos ao Direito Canónico —, o que as palavras “alegar texto”, isto é, opiniões de Padres, decisões de Concílios, etc., parecem corroborar.
Na Summa de ecclesiastica potestate, de Augustinus de Ancona, (Veneza, 1487), o assunto é tratado amplamente.
X — Sobre a reprovação e o livre-arbítrio:
Ni el precito que está condenado
nel saber divino si tiene alvedrío;
y su alvedrío si tiene poderio
para mudarse lo determinado.
No quiero estas dudas, porque es escusado
subillas ninguno al predicatorio.
Não há problema teológico de mais ardente e copiosa bibliografia que o indicado nestes versos e cuja complexidade levara Gil Vicente a afirmar que não era próprio do púlpito —, coisa assaz sintomática e que não poderia surgir em quem não tivesse tido alguma educação teológica.
A questão que ele considera é a predestinação à condenação, isto é, a reprovação, e, assim limitado o assunto, se o reprovado tem liberdade e tendo-a, pode mediante o exercício dela modificar o desígnio divino.




