Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

Se na predestinação se distingue entre predestinados à graça, e predestinados à glória, na maneira como Gil Vicente considera a reprovação pode considerar-se subjacente uma distinção equivalente?

Pode ainda ler-se nas palavras — condenado nel saber divino — a distinção entre predestinação e presciência?

Dúvidas que talvez se não possam resolver cabalmente, e cujo esclarecimento rasgaria clareiras insuspeitadas na mentalidade e no saber teológico de Gil Vicente.

Uma coisa, não obstante, temos por certa: a inconsistência da ilação que Teófilo Braga deduziu destes versos, correlacionando-os com os dos nossos §§ VI e IX. Em seu entender, o Poeta “aqui fala com franqueza da questão das Indulgências e do Livre arbítrio incompatível com a Graça. Gil Vicente deve ser considerado como um precursor da Reforma em Portugal...”. Nada, absolutamente nada, autoriza tal ilação, a começar pela razão simples de Gil Vicente não haver manifestado a sua opinião, limitando-se apenas a indicar algumas das questões teológicas que em seu entender não deviam subir ao púlpito, lugar de edificação de almas e não tablado de contendas e disputas escolásticas.

XI — Sobre o alcance remissivo do poder do Papa no Purgatório:

Ni disputar si el Romano Papado

tiene poderío en el Purgatório.

Trata-se de uma quaestio debatida nas escolas e de que dá testemunho a Summa Astessani, Veneza, 1478 (Res. 38-39 da Bib. da Universidade de Coimbra), no liv. V (De sacramento poenitentiae), f. XL v, col. 2, com a seguinte dubitatio: Utrum valere possit existentibus in purgatorio, inserta no De indulgentiis titulus; e mais precisamente a Summa de ecclesiastica potestate, de Fr. Augustinus de Ancona, (Veneza, 1487), na quaestio XXIX, ad quartum: Utrum papa possit indulgentiam dare illis qui sunt in purgatorio (Bib. da Universidade de Coimbra, R. 36-31).

XII — Se o inferno é anterior ao pecado:

No quiero arguir escusada question,

si fue el Infierno antes del pecado.

Não encontramos na literatura teológica mais em uso entre nós pelos fins do século XV passo algum que possa indicar-se como fonte ou expressão desta quaestio. Temos no entanto por certo que não foi invenção de Gil Vicente, sendo até de crer que constituísse tema de disputatio nas escolas.

A sua configuração é nitidamente escolástica, assentando a nosso ver na fórmula de procedência aristotélica: privatio praesupponit habitum.

Com efeito, vista a esta luz, a disputatio comporta as seguintes posições:

Teológica: o estado de pureza antecedeu o estado de pecado; portanto, o pecado foi anterior ao inferno.

Dialética: se privatio praesupponit habitum, o pecador, cujo pecado pressupõe a carência (privatio) da pureza, é posterior ao inferno, que é o castigo do pecado.

Como nas demais quaestiones, Gil Vicente não toma partido. Diz apenas que é uma escusada question, maneira de dizer que tanto pode significar desinteresse dialético como inutilidade prática, dada a existência humana estar afetada do pecado original.

XIII —Espécie do fruto proibido:

No quiero arguir si el fruto vedado

si era manzana, o pera, o melon.

A dúvida não é inteiramente jocosa como poderia parecer ao leitor atual e pareceu ao Sr. Aubrey Bell, que não hesitou em escrever que neste passo Gil Vicente se riu “a mais não poder dos pregadores”.

Se o sermão foi escrito com intenção séria, como é evidente, e até mesmo sob o aguilhão do sentimento do pecado, seria impertinente fazer soltar o riso no meio de pensamentos sérios, embora fosse legítimo fazer aflorar o sorriso. É este o caso.

Foram baldadas as consultas e leituras tendentes à determinação da respetiva fonte, notadamente nos Comentários de Alfonso de Madrigal, (†1455), el Tostadoe na muito divulgada Biblia latina cum glossa ordinaria Walafridi Strabonis aliorumque et interlineari Anselmi Laudunensis et cum postillis Nicolai de Lyra expositionibusque Guillelmi Britonis in omnes prologos S. Hieronymi (Veneza, 1495), que Gil Vicente conheceu pois é a “glosa interliniarum” e a “glosa ordinaria” invocadas pelo frade no sermão jocoso que serve de prólogo ao Auto da Mofina Mendes.

A dúvida tinha fundamento, já porque o Génesis (II, 9 e 17 e III, 6) não especifica a arbor boni et mali, já porque malum pode significar vários frutos e pomus também não tem sentido preciso.

Sirva de testemunho o seguinte comentário ao passo do De origine erroris, II, 12, em que Lactâncio Firmiano se refere à árvore na qual Deus “posuerat intelligentiam boni et mali:

“Ut ex arbore, etc.: Hoc est, fructu arboris, hanc arborem, vulgus malum fuisse putat, deceptum ambiguo pomi vocabulo, quod latius patet, et ficum quoque comprehendit. Veteres non consentiunt, plerique ticum, alii citrum vel vitem vel frumentum fuisse volunt, quorum loca Drusius assert”. Vid. L. C. Lactanti Firminiani, Opera..., Leide, 1660, p. 208, n. 12.

A inclusão do melon no grupo dos possíveis frutos proibidos tanto pode ter brotado da vis gracejadora de Gil Vicente como da conveniência da rima. No Auto da História de Deus (1526?) segue a tradição ao indicar a maçã.

XIV — Sobre o dilúvio universal:

No quiero deciros naqueste sermon si fue el diluvio curso natural segun los de Grecia; si fue divinal ira safíosa con causa y razon.

É, clara a quaestio: se o dilúvio, cuja existência não oferecia dúvida, foi um acontecimento puramente natural nas suas causas e efeitos, ou manifestação direta da vontade divina, que por ele teria significado um castigo.

A limitação dos problemas a esta quaestio, deixando de lado outras, designadamente sobre a universalidade e o número dos dilúvios, parece inculcar que ela constituía o tema capital das disputas na época de Gil Vicente, o que aliás Fr. António de Beja corrobora.

Sem tomar partido, Gil Vicente mostra conhecer os fundamentos das duas opiniões: a primeira baseava-a em “los de Grecia”, isto é, nos que seguiam a explicação natural que Aristóteles expusera na Meteorologia, I, in fine; a segunda, que remontava a Ovídio (Metamorf., I), foi constante na literatura cristã, exprimindo-a com vigor Lactâncio Firmiano no De origine erroris, II, 10: Factum esse diluuium ad perdendam, tollendamque ex orbe terrae malitiam, constat inter omnes. Esta foi também a opinião de Fr. António de Beja (ob. cit., p. 31).

A expressão curso natural talvez possa entender-se no sentido que lhe dava Agostinho Nifo: “que acaescan y sean infinitos diluuios y conflagraciones: si el mundo es perpetuo porque las causas vendran y bolueran ynfinitas vezes: y todas en circulo como Aristoteles dize y ensefia en el quarto de los phisicos”.

Gil Vicente excluía deliberadamente do Sermão todos os assuntos que acabámos de discriminar, por serem profundos e escorregadiços para o erro:

No quiero tocar secretos guardados

no quiero meterme en divinas honduras,

no quiero volar naquelas alturas

no queman las alas dos desasesados.

Outra razão, mais pessoal que doutrinária, acrescentava ainda: não querer confundir-se com os pregadores que para parecerem sábios argumentavam no púlpito como se disputassem, e no local próprio das disputas, que são as escolas, se conservavam silenciosos:

No quiero ser uno de algunos letrados

que por demostrarse profundos barones,

desputan consigo en las predicaciones

y en las escuelas estanse callados.


?>
Vamos corrigir esse problema