Os sermões de Gil Vicente e a arte de pregar

Além da Teologia e da Exegese, Gil Vicente excluíra ainda o estudo da Antiguidade clássica,

No quiero arguir en plazer ni pena,

 los afios de Archiles, Patróculo et cetra,

ni descudrifíar allende de la letra,

si era mas luenga Ecuba o Elena.

assim como o da biografia, isto é, a História:

Que haze à la historia ser mala ó buena

saber donde Ulises erró el camino [?]

ni quiero ser cierto ni ser adevino,

 quien fue el primer juez en Vaena.

A maneira depreciativa como fala do saber clássico e da erudição histórico-bibliográfica é mais um testemunho a juntar aos muitos que situam intelectualmente Gil Vicente no crepúsculo da Idade Média, que não na aurora da Renascença.

Volvidos vinte anos, em 1527, abrirá a Comédia sobre a divisa da Cidade de Coimbra com os versos:

Pois que o honor do mundo presente se dá com razão à antiguidade,

que evidentemente traduzem a apreensão do valor próprio do mundo clássico; no entanto, qualquer que fosse a amplitude da sua visão retrospetiva, — e não foi dilatada nem profunda — sempre ficou fiel à conceção pragmática de que o que interessa na História é o que faz com que ela seja “mala o buena”, isto é, a conduta guiada pela religião.

Por isso, sem interesse pela erudição e temeroso dos riscos da especulação teológica, o espírito de Gil Vicente, neste Sermão, como em todos os seus escritos, não pretendeu ocupar-se de assuntos que se não radicassem visivelmente na realidade da vida que se vive terrenal-mente e da que a alma aspira a viver eternalmente:

Ansi que concluyo el no quiero,

que es mi voluntad naqueste sermon

dexar los secretos de especulacion,

y decir las cosas que tienen mas pies.

A segunda parte do tema desenvolve a ideia do que inclui em quiero, e o método que aqui emprega é diverso, pois recorre à alegoria, cuja aplicação, sobretudo a partir de Santo Isidoro de Sevilha e de Hugo de S. Victor, constituía um dos processos, a par da história e da tropologia, de explanação do sentido do texto.

O seu quiero consiste, essencialmente, em declarar, “da parte de Deus e de Santa Maria”, que o mundo humano é um pandemónio em que todos andamos ao som do “baile” do diabo,

vos, y yo, y aguei, y aquella.

Por isso, não hesita em jurar

á las órdenes que recebi

y al sacramiento que hoy celebré,

que nunca en el mundo hubo tanta fee

 con el infierno como hoy ha hi.

E porque assim é, devido às gentes haverem trocado o bem pelo mal, o mundo está enfermo, tão doente que

no puede durar, quierese finar,

segun las seilales [que] en él conoci.

Estabelecido o paralelo entre o mundo e o moribundo, começa propriamente a alegoria, mediante a qual vê no mundo os nove sinais que apresenta “el enfermo que se quiere finar”. São os seguintes: perda do gosto, do conhecimento, da vista, do tino (“apaña la ropa sin tiento”), desassossego, inutilidade de medicinas, frialdade das extremidades, delírio (“engruesa la lengua, la habla turbada”) e por fim ânsias e estertor (“con fuerza y pasion, aprieta los dientes con ansias mortales”).

O símile é conduzido com vibração moral, com energia repreensiva, com audácia afirmante, com vigor incisivo, com largueza de vistas, tão dilatadas que quase lhe não escapa nenhum estado ou classe social nem forma alguma de comportamento e de conduta.

Literariamente, esta parte do sermão é inconfundível, mas para o nosso ponto de vista o que importa é a atitude mental que lhe subjaz.

A intenção parenética é evidente, porque o espraiar de tanto erro, de tanto desvario, de tanta ambição e de tanto descaminho, tem por norte e guia mostrar que el triste del mundo va de cara atrás.

Tal qual é, ou melhor, está, o mundo não pode durar; e porque os sinais da sua agonia são evidentes, esta parte termina, coerentemente, com a recitação das seguintes palavras do sexto responso do Ofício dos Defuntos, relativas ao novíssimo dia do Juízo: Dum veneris judicare saeculum per ignem.

O génio literário de Gil Vicente tem no desenvolvimento desta alegoria expressão admirável, mas a alegoria em si mesma não lhe pertence, como lhe não pertence o rol dos nove sinais da morte. Ele próprio o declara —Nueve sefiales habeis de saber—, mas não logramos apurar onde foi colher a enumeração de uma sintomatologia que Fr. Luís de Granada ainda recordaria em parte no Guia de Pecadores. D. Carolina Michaëlis afirmou que eram “imitados dos Quindecim signa ante juidcium”, mas não fez a prova, nem tão-pouco a encontramos no caminho que seguiu, pois os Quindecim signa não têm relação próxima com os nove sinais do moribundo.

Perante o espetáculo do mundo que se fina, o apelo à aplicação de um revulsivo salvador poderia constituir o assunto da peroração final. O tema, porém, como que vedava tal recurso, porque a palavra deficior significava que o moribundo já se achava sem forças pelo que a aplicação de qualquer medicina seria por demás.

Seguindo, pois, “la regla y compás” da técnica do sermão, constrói a peroração final sob a ideia da inutilidade de tudo o que prolongue e revogue à vida:

Es por demas la buena semiente

sembrada en la tierra estéril y mala

……………………..

es por demas la candela al ciego

 y consejo al loco y don al villano.

Es por demas predicar verdad,

es por demas clamar por virtud,

es por demas traeros salud,

es por demas reprender maldad.

O martelar incisivo e contundente das frases é um artifício revelador, a um tempo, do génio verbal de Gil Vicente e do perfeito domínio da arte parenética. As ideias, claras, simples, incisivas, tendem a gerar, pela cadência ritmada do motivo es por demás, o sentimento contrário ao que as palavras dizem.

Colheria Gil Vicente a sugestão num sermonário, porventura de inspiração franciscana, ou, como parece mais crível, no exemplo incitante da pregação de Savonarola? A última hipótese não é de excluir: no entanto, qualquer que haja sido a fonte, se a houve, é indiscutível que incutiu intensidade emotiva e, seguro do efeito psicológico, soube levar ao paroxismo a consciência religiosa dos seus ouvintes, ao dizer-lhes que

es por demás aqueste sermon

e ao suplicar,

à la Virgen y al hijo suyo

que nos dee muerte con nuestra vitoria.

Por isso, as suas derradeiras palavras são extraídas da absolvição que o sacerdote recita na hora extrema:

... nos restituya nel cielo ad quam gloria

 nos perducat por el poder suyo.

A análise breve deste “curiosíssimo” Sermão, no dizer de D. Carolina Michaëlis, mostra com clareza que ele se não “limita á una exhortación moral con puntas de sátira”, como julgou Menéndez y Pelayo. É isto sem dúvida, embora pareça mais exato dizer-se recriminação que sátira, dada a vivacidade do sentimento do pecado, que em nenhuma outra obra vicentina atingiu tão desbordante emoção, aliás desacompanhada da inquietude profunda sobre a Graça, o que, a um tempo, revela a essência da religiosidade de Gil Vicente e a barreira que o separa do caminho dos reformados protestantes; mas é também mais do que isto.


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