A propósito da atribuição do secreto de los secretos de astrologia ao Infante D. Henrique

São de permanente atualidade e de indefessa revisão crítica os problemas, assertos e modos de ver relativos à génese dos Descobrimentos e à extensão e profundidade dos conhecimentos científicos e técnicos dos primeiros descobridores.

Para honra da nossa historiografia, principalmente a partir do século passado, não tem esmorecido o afã da indagação documental nos diversos objetivos sobre os quais ele pode praticar-se. Por sua diligência, possuímos ao presente uma massa apreciável de factos de primeira mão, mas não é ousadia dizer-se que a soma de informes e dados incontroversos, aptos a servirem de ponto de partida e de fundamento sólido a explicações coerentes e consistentes, não sofreu alterações ou acréscimos substanciais.

De modo geral, mantém-se como que constante há já bastantes anos; e, pelo contrário, a margem das dúvidas e das hipóteses tem-se alargado notavelmente. que, em contraste com a escassez de documentos decisivos, a capacidade de os interpretar como que se torna mais perspicaz e subtil à medida que a consciência histórica se apercebe com mais nitidez da magnitude de acontecimentos que não têm par, quer na complexidade das consequências, quer na unicidade das circunstâncias, dado ser irrepetível a situação espiritual e mental em que se encontrou o Português de Quatrocentos, de alma moça e ambicioso de engrandecer o Portugal rejuvenescido em Aljubarrota com um desígnio que o afastasse da teia de mútuos desacordos em que estéril e perigosamente se consumia a política dos Estados peninsulares. Desiludido pelo desastre da aventura militar na Galiza, que em Espanha parece ter ressoado como desforra de Aljubarrota, a força das circunstâncias convenceu-o de que a fronteira terrestre teria de ser simultaneamente limite e barreira. Somente o Mar lhe oferecia a expansão desafogada, sem risco de contendas com vizinhos, sendo um momento augusto, este, o dos primeiros descobridores, quando na mente se lhes formou a ideia da existência da Terra como espaço de possíveis fronteiras geográficas desconhecidas e como morada de seres humanos de insuspeitada figura e compleição.

Tudo o que diz respeito a este momento supremo, em que maravilhosamente se consubstanciaram o risco intelectual, inerente às grandes conceções que abrem caminho, com o rasgo da intrepidez do ânimo, superior aos arrebatamentos e às inibições do instinto vital, há-de sempre atrair a curiosidade explicativa, mormente o que importa à prefiguração do infante D. Henrique como iniciador e mentor das primeiras viagens de além-mar.

Não há, a bem dizer, um quesito de tão complexo questionário que não tenha sido variamente considerado e julgado, e dentre eles o ponto que nos vai ocupar: a atribuição de um livro de Astrologia ao Infante que iniciou a gesta dos Descobrimentos.

Descontando os documentos oficiais, não chegou até nós qualquer escrito de D. Henrique, de longe ou de perto compaginável aos de D. Duarte e D. Pedro, nem tão-pouco possuímos um traslado comparável ao rol do legado bibliográfico do infante D. Fernando, que de algum modo é a projeção das preocupações da alma religiosa do mártir de Fez. Os coetâneos não lhe atribuem qualquer escrito literário ou científico e os grandes historiadores do século XVI que se ocuparam da sua personalidade também são silenciosos a tal respeito.

Nesta conformidade, constitui uma surpresa e um problema a notícia de que Fernando Colon possuíra um manuscrito intitulado Secreto de los Secretos de Astrologia, composto pelo infante D. Henrique de Portugal.

Bartolorneu J. Gallardo deu pela primeira vez esta notícia, em 1866, no extrato do Registrum librorum don Ferdinandi Colon que publicou no t. II, col. 553, do Ensayo de una Biblioteca de libros raros y curiosos, reproduzindo-a em Portugal, cremos que antes de outrem, Sousa Viterbo, na parte primeira dos Trabalhos Náuticos dos Portugueses nos séculos XVI e XVII (Lisboa, 1898, p. 152).

O desejo de esclarecer estes e outros assuntos respeitantes à cultura portuguesa levou-nos a Sevilha, em 1924. Na famosa Biblioteca Columbina, hoje ainda repositório valiosíssimo apesar das depredações e dos estragos do tempo, pudemos verificar a exatidão da notícia de Gallardo. Com efeito, no Registrum, n.° 4129, de Fernando Colon, lê-se: “Libro en español de mano llamado secreto de los secretos de astrologia cõpuesto por el Infante don enrriq de portogal.I. aqui se comiença vn libro q se llama segredo.d. a dios fazer como su nd [merced?] fuere a dios grts. es en 4.° Costo en salamãca tres reales a.21.de abril de 1525”.

O Abecedário confirma esta descrição, segundo o que se lê na col. 552: “Enrricus a portugalia in secretis secretorü astrologie hispanice et manu scriptis. 4129.

Os dois assentamentos confirmam, sem sombra de dúvida, que o filho de Cristóvão Colombo possuiu um manuscrito em castelhano, intitulado Secreto de los Secretos de Astrologia, cuja autoria atribuía a um infante D. Henrique de Portugal. É tudo o que pode afirmar-se, porque o que vai além disto, salvo a identificação do infante, somente dá franco acesso à verosimilhança e à conjetura.

A identificação, com efeito, não padece dúvida, pois não existiu um infante de Portugal, de nome Henrique, que pudesse ter sido autor de tal livro senão o filho de D. João I.

A existência do livro também é indubitável, porquanto se sabe que o erudito historiador e poeta sevilhano, Gonzalo Argote de Molina, (n. 1549) possuiu um manuscrito intitulado Secreto de Astrologia por et infante Don Enrique de Portugal, que é a mesma obra referida por Fernando Colon, apesar da ligeira variante do título. Ignora-se se este manuscrito era ou não o mesmo que pertenceu àquele insigne bibliófilo, cujo desaparecimento da Columbina se deve ter dado no século XVI ou no XVII, pois, como verificamos, os inventários pós-fernandinos de Juan de Loaysa (1684) e de Diego Alexandre de Galvez (1783) já não o mencionam.

O paradeiro do manuscrito que esteve na livraria de Argote de Molina também é desconhecido, dispersa como foi a livraria do diligente antiquário.

As restantes perguntas que a notícia do Registrum columbino suscita já não têm resposta tão fácil, designadamente as relativas ao conteúdo do Secreto e à atribuição da autoria. Tentemo-las, não obstante, apesar da convicção antecipada de não lograrmos esclarecimentos indubitáveis quando muito a possível aproximação da verdade e, talvez, a eliminação de um ou outro equívoco.

Fac-simile da inscrição do Secreto de los Secretos de Astrologia

no Registrum de Fernando Colombo

À primeira vista, o título — Secreto de los Secretos de Astrologia — sugere imediatamente que se trata de uma obra astrológica, e esta primeira impressão é a opinião mais verosímil. Ë, porém, de observar que as palavras Secreto de los Secretos... recordam o título do escrito falsamente atribuído a Aristóteles, que mais comummente se designava de Secretum [Secreta ou De secretis] secretorum, a que também se chamou Aristotelis ad Alexandrum regem, que em tradução francesa aparece com o título Le gouvernement des princes e Le secret des secrets de Aristote qui enseigne à connoitre la complexion des hommes et des femmes, e na tradução castelhana com o de Poridad de poridades.

Tão grande variedade de títulos atesta claramente a larga divulgação desta obra, que foi conhecida entre nós talvez já em tempos do Condado Portucalensee sem dúvida nos do infante D. Henrique, como mostram a citação que dela fizeram Gomes Eanes de Zurara na Crónica da Tomada de Ceuta e D. Duarte no Leal Conselheiro. O rei -filósofo parece até ter tido dúvidas sobre a autenticidade da autoria que comummente atribuíam ao De secretis secretorum, deixando bem expressa em todas as citações a feição ético-política deste mistifório de origem arábiga, de cuja versão possuiu um manuscrito, designado no rol da sua livraria com o título: Segredos de Aristóteles. Se esta versão, portuguesa como é de crer, pode ou não identificar-se com o manuscrito português do Segredo dos Segredos, cuja existência o Dr. Armando Sousa Gomes deu a conhecer; se o infante D. Henrique foi o autor desta versão, como pensa o descobridor do manuscrito e com ele o Dr. J. M. Piel; se o tradutor, quem quer que fosse, foi ou não fiel na lição que adotou e qual ela haja sido, se um texto latino, se a versão castelhana —, são dúvidas que somente podem ser esclarecidas pela publicação integral do manuscrito, tornada como que dever depois do anúncio da sua existência.


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