A propósito da atribuição do secreto de los secretos de astrologia ao Infante D. Henrique

Dentre os conhecimentos a cujo estudo o infante se deu, temos por seguro que se contariam, se é que não avultavam, os que por então se compreendiam na noção geral de Astrologia, e que foram altamente prezados.

No seu tempo, o conceito dominante de Astrologia fora o da Ciência da Esfera, como a havia definido Afonso o Sábio  e discriminado Sacrobosco, com a contaminação de alguns juízos sobre a influição astral e com o acrescentamento de algumas considerações de ordem meteorológica e, porventura, geográfica.

Quer dizer: nem pura Astronomia, nem somente Astrologia judicativa, mas uma mescla em que as relações quantitativas e de posição dos corpos celestes comportavam por assim dizer dimensões qualitativas e de causalidade em eventos e seres do mundo sublunar.

Foi este o conceito de Astrologia vigente entre nós na primeira metade do século XV, como testemunham o Livro da Montaria, o Trautado da virtuosa benfeyturia, o Leal Conselheiro, e as Crónicas de Ceuta e de Guiné, de Zurara.

Sob o ponto de vista que nos ocupa, o Livro da Montaria é notável, por dar a um tempo a bibliografia que D. João I considerava importante e que, parece, possuiu inteiramente, e o que entendia por Astrologia, ou mais rigorosamente os assuntos astrológicos de que se ocupou no seu valioso tratado.

Os escritos lá citados são, como esclareceu o Dr. Luciano Pereira da Silva, um “grande livro de astronomia” de João Gil, o De magnis conjunctionibus, de Albumazar, o Almagesto, de Ptolomeu, o Livro dos Juízos, de Ali ben Ragel, e “o author da sphera, e da theorica das pranetas”, que é o livro de João de Sacrobosco (Holywood) que Pedro Nunes traduziu e deu a público em 1537.

A relação comporta, como se vê, escritos astronómicos a par de escritos astrológicos, notando-se esta mesma mistura das duas ordens de conhecimentos nas páginas (125-133) em que D. João I, com base no livro de João Gil e na distinção das coisas que “som feitas per natura naturante, que he Deus, ou por natura naturada que Deus fez”, se refere às noções de natureza, de matéria primeira, “a qual nos nom podemos saber que he, nem de que he, senom que lhe chamam todollos philosophos ille, da qual [Deus] fez os quatro ellementos”, que é evidentemente a ??? de Aristóteles, da composição dos corpos celestes, das divisões da Esfera celeste, dos signos e respetivas “calidades e influencias”, dos ventos, do movimento dos planetas e sua influência no estado do tempo.

Na Virtuosa Benfeitoria, as alusões são escassas e breves, como é natural, dada a índole do livro. São, não obstante, suficientes para mostrar que o infante D. Pedro não desconheceu os elementos da teoria da Esfera e que, como seu pai, admitiu que “em cada hüa parte [do Zodíaco] per desvayradas influençias se geeram em os homees compreyssoões contrayras, de que proçedem nouos falliçimentos, que deuem ser aiudados com perteeçentes benffeytorias”.

Esta alusão à influição astral ocorre na exposição de uma teoria do Tempo, na qual D. Pedro discrimina o tempo geral, o tempo pessoal e o tempo casual, e cuja origem e alcance filosófico apreciaremos noutro lugar mais adequado. A sua verdadeira dimensão é, por assim dizer, metafísica, podendo sob este ponto de vista pôr-se a par da outra alusão, proveniente da teoria estratiforme dos modos de atividade humana, na qual D. Pedro distinguia o modo natural e o modo espiritual, “fundandosse [o modo natural] em as influencias dos corpos celestiaaes”, pelas quais cada ser humano “faz mudança com aquellas cousas que corporalmente lhe som proveytosas”.

O Leal Conselheiro também não faz exceção. O rol da livraria de D. Duarte acusa a existência de dois manuscritos de Astrologia, encadernados em couro, o que é indício do interesse do monarca por esta ordem de conhecimentos, o qual é corroborado pelas referências do Leal Conselheiro, que podem repartir-se em dois grupos: as de carácter astronómico, e as de problemática ético-religiosa, pelas implicações da crença nos juízos e vaticínios propriamente astrológicos.

No primeiro, sobressaem os caps. 101 e 102 do Leal Conselheiro, nos quais expõe as regras para se saberem as horas pela Ursa Menor; no segundo, contam-se várias alusões esparsas, cuja nota dominante é a dificuldade da conciliação do vaticínio da astrologia judicativa com a fé na omnipotência divina, com o livre-arbítrio e com o castigo do pecado.

D. Duarte não nega de forma alguma a “desposiçom dos corpos, hidades e virtudes a que naturalmente cada hüu nace desposto, ou segundo o dicto dos estrollogos que as pranetas per ordenança de nosso senhor o dotarom”, e até admite a veracidade de prognósticos “por geeral costollaçom, como foy a pestellença grande que ante per muyto tempo dos estrollogos foy prenosticada”. Na ordem natural, a influição astral parecia-lhe admissível dentro dos limites do bom-senso, porém, na ordem moral condenava a subordinação das ações às predições astrológicas ou mágicas, porque “contra os que a[a] ventura, costellaçom de pranetas encomendam e leixam seus feitos, eu lhes digo que, se bem conssiirarem, que todo vem de nosso senhor”.

À omnipotência e causalidade divinas, acrescia ainda o livre-arbítrio como condição essencial da atividade moral, do mérito, do demérito e do castigo de pecados. Com efeito, “se todo per tal ordenança [dos planetas] fezessemos, e nom por determynaçom de nosso livre alvydro, a que seria mandar e conselhar a quem per sy mais poder nom tevesse de que as pranetas nos outorgassem? E porem he de téer sem duvyda que as pranetas nos enduzem a dam inclinaçom a bem e a mal... mas nom em tal guysa que lhe nom possamos contradizer com a graça de nosso senhor...”.

Em conclusão, e para empregar uma vez mais as próprias palavras do Leal Conselheiro, bem expressivas do pensamento de D. Duarte nesta matéria, “podemos seer enduzidos e tentados” pela influição astral, “mes nom costrangidos. Porque pryncipalmente fica todo em poder de nosso livre alvidro, nom nos costrangendo a predistynaçom nem per sciencia de nosso senhor deos”.

Coerente com esta opinião, compreende-se que D. Duarte tivesse repelido o adiamento da cerimónia do seu levantamento como rei pelo juízo prognóstico do médico e astrólogo Guedelha, relativamente à hora marcada, por não querer dar mostra de pouca fé em Deus mas a coerência da conduta não é sinónimo de originalidade no pensar.

Conquanto em parte alguma D. Duarte distinga claramente os futuros fortuitos e livres dos futuros naturais, é óbvio que esta distinção tomista subjaz ao seu pensamento, assim como a outra tese de S. Tomás de Aquino de que os astros exercem uma influência direta sobre os corpos inferiores e somente indireta ou acidental sobre as capacidades da alma.

Zurara foi herdeiro e convicto mantenedor desta tradição. Nas páginas das suas Crónicas, como nas de nenhum outro contemporâneo, são numerosos os períodos atinentes à Astronomia e à Astrologia, não discriminadas nos respetivos âmbitos, e tão variados que amplamente corroboram o juízo de Mateus de Pisano, quando qualificou o nosso primeiro memorialista dos Descobrimentos de nobilis astrologus, isto é, de astrólogo sabedor.

A bem dizer, Zurara escreveu em tempos posteriores à época em que é de crer que o infante D. Henrique tivesse adquirido os conhecimentos destas matérias; por isso, o seu testemunho serve fundamentalmente para corroborar o apreço em que pela juventude do cronista era tida a Astrologia e para mostrar, mais explicitamente que outrem, o conteúdo doutrinal que então se atribuía a esta ciência.


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