A propósito da atribuição do secreto de los secretos de astrologia ao Infante D. Henrique

Sem esta condição prévia e indispensável, é prematuro tudo o que se diga a tal respeito; no entanto, não hesitamos em admitir que a versão portuguesa do Segredo dos Segredos, que se imagina do punho do infante D. Henrique, não é identificável com o Secreto de los Secretos de Astrologia que os registos de Fernando Colombo atribuem ao mesmo Infante. Em primeiro lugar, separa-os a linguagem, pois aquele manuscrito está redigido em português, e o manuscrito columbino estava escrito em espanhol, como informam concordantemente o Registrum e o Abecedário dos livros de Fernando Colombo. Em segundo lugar, divergem pelo assunto, porque a referência passageira que o Segredo dos Segredos, atribuído a Aristóteles, faz à Astrologia, e que D. Duarte citou, não é bastante para caracterizar esta compilação com índole astrológica, pois a sua feição ostensiva, como já dissemos, é ético-política, que foi aliás a feição que nela considerou o autor do Leal Conselheiro e que, por isso, o devia ter contado entre os livros de que se rodeou para redigir o seu “A B C de lealdade,... feito principalmente para senhores e gente de suas casas...”.

Apesar da diversidade dos numerosos manuscritos, pode dizer-se que o Secretum secretorum se compõe de quatro partes, sendo a primeira uma diretiva de príncipes, a segunda, um preceituário de regras da saúde, a terceira, uma miscelânea sobre a arte de governar, especialmente em tempo de guerra, e a quarta, um tratado de Fisiognomia. A referência à Astrologia ocorre na segunda parte, para justificar que a Astronomia é necessária à preservação da saúde, e, portanto, que o bom médico carece de ser astrónomo.

Basta este esquemático sumário, que corresponde ao índice do Segredo dos Segredos publicado pelo Dr. Armando Sousa Gomes (cit. art., pp. 199-200), para mostrar que o Secretum é uma compilação de conhecimentos e de preceitos muito variados, cuja índole repugna à obra atribuída ao infante D. Henrique, pois os títulos dos registos columbinos e de Argote de Molina coincidem em indicar que a Astrologia constituía o assunto do Secreto de los Secretos de Astrologia, ou por outras palavras, ela não devia ser limitada a passageira alusão, como no Segredo dos Segredos.

Ponderado como mais razoável que a Astrologia constituía o objeto do Secreto de los Secretos de Astrologia, cumpre agora examinar a verosimilhança da atribuição da autoria ao infante D. Henrique.

Como é óbvio, dada a carência de informes e de testemunhos diretos, somente temos diante de nós o caminho hesitante das correlações e da coerência lógica, e neste caminho, dois únicos pontos de apoio: a ação do infante D. Henrique como protetor da Universidade e o apreço que no seu tempo houve pelos conhecimentos astrológicos, entendendo por tal, como adiante diremos, a Ciência da Esfera com contaminações da credulidade na influição astral. Atentemos em cada um deles, separadamente.

Dos filhos varões de D. João I somente não chegaram até nós testemunhos diretos da capacidade literária dos infantes D. Henrique e D. João, assim como do teor das livrarias, que certamente cada um ajuntou no seu paço de habitação. A carência atual de informes — e dizemos atual, por se não poderem considerar esgotadas as fontes documentais donde podem provir novos conhecimentos relativos a D. Henrique e a seus irmãos — não deve considerar-se sinónimo de incultura e de desafeição pelos livros. A falsidade da pintura de Oliveira Martins, imaginando o infante D. Henrique na “escola de náutica e cartografia”, que abrira em Sagres, a consultar livros de Jorge Purbáguio e de Regiomontano — sem os quais, aliás, se não compreendem cabalmente a origem e o desenvolvimento de algumas ideias de Pedro Nunes, notadamente de Astronomia e de Trigonometria —, não prova que ele não tivesse lido outros livros de intenção científica, assim como o desconhecimento atual de testemunhos coevos acerca da “sabedoria” do mesmo Infante não é prova de que tivesse sido pouco menos que ignorante.

É que temos quase por inconcebível que entre os filhos de D. João I houvesse um só que dissentisse dos máximos valores intelectuais e morais que impregnam a vida de significação, que não tivesse sido educado nas mesmas condições, que não tivesse sentido os mesmos deveres como homem e os mesmos escrúpulos da responsabilidade como dirigente.

Admirando o pai, por quem tiveram “amor e temor” na “secreta camara do coraçom”, acatando-o lealmente na intenção, nas ações e nas palavras, obedecendo-lhe sem reservas e respeitando-o deveras como Homem, que sabia dirigir-se à razão, e como soberano, que não voltava com a palavra atrás, pressente-se, no entanto, que modelaram moralmente a alma na lição silenciosa do exemplo materno, talvez frio e severo, mas insinuante e persuasivo pelo esmero e retidão no cumprimento das obrigações que a cada momento enchem a vida das esposas que são Mães. Sejam rainhas no Estado ou humildes guardiãs das quatro paredes de suas moradas, são as lições sem palavras destas Mulheres, servas e senhoras do que há de mais digno no coração humano, as únicas que ensinam eficazmente só haver uma maneira de fazer as coisas, que é fazê-las bem feitas e sem deixar remorso, e as que melhor capacitam o ânimo dos filhos para a constância do carácter e para a firmeza das decisões viris.

Cada um dos infantes da “Ínclita Geração” alcançou personalidade própria, inconfundível e bem vincada nas opiniões e na conduta, e traçou o próprio destino com autonomia e decisão. Divergiram por vezes no pensar, como quem somente atende ao apelo uníssono da razão e da consciência, e nem sempre estiveram de acordo na solução mais conveniente ao interesse do país. Eram independentes e talvez ciosos da individual maneira de ver e dos interesses privativos das suas casas e rendas; contudo, estreitou-os apertadamente o mútuo apreço, senão desvanecimento da irmandade, a submissão ao escrupuloso sentido da Vida como sacerdócio, o sentimento da responsabilidade inerente à posição social que ocupavam, o respeito pelos mesmos valores morais e o acatamento às mesmas ideias normativas. Constituem uma rara comunidade fraternal, que é a recompensa difícil das famílias numerosas, quando os filhos nascem com dotes e recursos semelhantes, são criados no respeito absoluto à abnegação materna e na alegria da mútua franqueza, e onde a personalidade de cada um vai desabrochando como sublimação do cumprimento pontual e isento dos pequenos deveres quotidianos, que jamais se deixam adiar ou preterir.

Estas considerações, se confortam a crença na eficiência da educação, não certificam de maneira alguma a sabedoria do infante D. Henrique; somente inclinam a pensar que entre a cultura do seu espírito e a de seus irmãos D. Duarte e D. Pedro não deve ter existido a diferença que vai da montanha ao vale, e que se não escreveu um livro como o Leal Conselheiro ou como o Trautado da Virtuosa Benfeyturia podia ter escrito outras páginas mais consentâneas com os interesses e ocupações da sua inteligência.

Com efeito, as suas iniciativas e benemerências de “protetor” da Universidade são, a um tempo, obra de homem prático e de intelectual inovador, amante dos conhecimentos exatos.

Os documentos do Arquivo da Universidade de Coimbra mostram que D. Henrique foi reformador, senão “o segundo criador da Universidade”, como pensava o erudito Brito Rebelo, pois não só lhe doou instalações próprias, que mandou adornar e acomodar devidamente, senão que lhe insuflou vida nova com o acrescentamento do quadro de estudos.


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