A propósito da atribuição do secreto de los secretos de astrologia ao Infante D. Henrique

Daqui, a importância extraordinária deste manual na História da Educação, pois as sentenças que o compunham serviam, a um tempo, de vocabulário de leitura, de pauta de escrita e de enquirídio de máximas morais. Não é possível datar com exatidão a época em que começou a adotar-se entre nós o Disticha Catonis, pois é de crer que nas nossas escolas claustrais e catedrais se aprendesse a leitura por um catecismo ou cartilha de orações, paralelamente à entoação musical e, para alguns, ao saltério, mas temos por seguro que foi o texto seguido no último quartel do século XIV, como prova o documento que consideramos, durante o século XV, como provam as citações do Leal Conselheiro', e cuja influência atingiu ainda o primeiro quartel do século XVI, como parece testemunhar a edição saída em Lisboa, em 1521, do prelo de German Galharde, em castelhano, com o título de Castigos e enxempros de Catom.

Eram estes os livros minores que, nos termos do alvará de D. Pedro, podiam ser lecionados por mestres particulares, em regime doméstico —, o que não exclui que também pudessem ensinar-se no Estudo Geral, como sabemos ter sido instituído (ou reconhecido) na doação do infante D. Henrique, em 1431, pois outro sentido não pode ter o estabelecimento de uma dependência da Universidade expressamente destinada ao ensino da Gramática, por causa do “arroido” das respetivas aulas.

Todos eles se destinavam à aprendizagem da leitura, da escrita e dos rudimentos da língua latina. Os livros maiores, isto é, os livros que já pressupunham a leitura desembaraçada, o conhecimento elementar do Latim e serviam como que de introdução ao estudo das cadeiras que constituíam as Faculdades, somente podiam ser lecionados na Universidade.

Os documentos conhecidos não indicam os títulos dos que mais frequentemente andariam na mão dos estudantes artistas, mas, no que respeita ao grau superior da Gramática, a preferência devia ter recaído num destes: a Ars maior, de Donato, cuja terceira parte, designada de Barbarismus por ser esta a sua primeira palavra, teve grande voga, o Doctrinale, de Alexandre de Villedieu (Villa Dei, 1199), que era uma Gramática versificada, ou ainda as famosas Institutiones de Prisciano, que foram, por assim dizei, o tratado fundamental dos assuntos gramaticais.

A outra disciplina mencionada no alvará de 1371 que o rei D. Pedro dirigiu ao Reitor da Universidade é a Dialética.

Também não possuímos qualquer informe documental, de arquivos portugueses, acerca da extensão e da prática do ensino desta matéria.

Somente se pode afirmar que a designação de Dialética é equivalente à de Lógica. Estudar-se-ia, portanto, o essencial da Lógica da Escola, — os cinco predicáveis, as dez categorias, a classificação das proposições e as regras sumárias do silogismo —, mas já não é possível aventar, sequer, o compêndio que o comum dos mestres ditaria, notadamente se as Summulae logicales de Pedro Hispano, embora as citações e modos de dizer do infante D. Pedro, de D. Duarte e de Zurara, mostrem claramente a divulgação de conhecimentos lógicos e até aqueles refiram alguns tratados que compõem o Organon de Aristóteles.

Os documentos também não mencionam o ensino da Retórica, a terceira disciplina do Trivium cujo objeto era “affermosar la razón e mostrar la en tal manera, quela faga tener por uerdadera e por cierta alos que la oyeren, de guisa que sea creyda”, como se escreve na General Estoria, de Afonso o Sábio O silêncio não significa, porém, necessariamente, que esta arte estivesse excluída da formação intelectual mais apurada, pois, pelo menos a partir do século XV, é de admitir a divulgação de alguns conhecimentos desta matéria, como autorizam o apreço de D. Pedro e de D. Duarte por Cícero, traduzindo aquele o Livro dos Ofícios, e citando um e outro_ conceitos do orador romano e a Retórica de Aristóteles. Em todo o caso, oficialmente, considerou-se que a Gramática e a Lógica eram suficientes para o bacharelato em Artes, como expressamente consignam os Estatutos que a Universidade jurou em 16 de Julho de 1431 na Sé de Lisboa. Com esta disposição, mantinha-se a tradição de sempre e significou-se também que se considerava a Retórica uma arte dispensável —, ou por outras palavras, continuava a adoção da didática francesa de subordinação do Trivium à Dialética.

A doação do Infante alude expressamente ao ensino da Retórica, o que representa uma inovação. Se foi ou não ensinada, não o podemos dizer; em todo o caso, a menção desta disciplina exprime um propósito inovador, talvez o de atenuar a tradicional formação disputante, com base na Dialética, pelo bom gosto da expressão retórica, que então começava a despontar pela influência ele Cícero e de Quintiliano e da qual Zurara foi cultor sincero e oficialmente apreciado em missiva de Afonso V.

Retomando o fio das ilações, consiste a segunda em estabelecer que das quatro disciplinas do Quadrivium somente se ensinou a Música até à época da doação do infante D. Henrique.

O documento coetâneo mais esclarecedor do ensino desta disciplina é o Regimento que se deue teer na capella pera seer bem regida, o qual constitui o cap. 96 do Leal Conselheiro, cujos informes, aliás, ficam muito aquém da nossa curiosidade indagadora. Põe, no entanto, a claro que a aprendizagem tinha como objetivo fundamental a liturgia do culto religioso, que ela se associava ao estudo do Latim e que se iniciava com método semelhante aos das repetitiones no ensino das primeiras letras.

O quadro docente não comportava oficialmente mestres das demais artes reales, e, por outro lado, nenhum documento testemunha que elas houvessem sido ensinadas na Universidade anteriormente à doação do Infante. Ë de crer que com a leitura e a escrita se ministrassem as regras mais elementares da Aritmética, mas o ensino de tais rudimentos não tinha continuação no quadro dos estudos universitários.

Finalmente, depreende-se ainda do conjunto dos documentos conhecidos, como terceira ilação, que o ensino das Artes, desde a fundação da Universidade, em 1290, até à doação do infante D. Henrique, no início do ano letivo de 1431, esteve fundamentalmente organizado em função da preparação para a vida clerical, pois o ensino da Gramática equivalia ao estudo do Latim, o da Dialética, à arte de argumentar e de refutar, e o da Música, à aprendizagem do cantochão.

Se estas ilações são coerentes e bem fundadas, como ajuizamos, é óbvio que a doação do infante D. Henrique, em Outubro de 1431, representou uma inovação: o estabelecimento do quadro completo do Trivium e do Quadrivium. Repare-se um momento no que isto significou sob os pontos de vista pedagógico e histórico-cultural.

A situação da Universidade de Lisboa não era então nem decorosa, nem brilhante: materialmente, mal instalada, “per casas alheas, e de aluguer, como cousa desabrigada e desalojada”, como se declara no instrumento de doação do infante, e cientificamente, incompleta, com reduzido quadro de estudos. Instalá-la e atualizá-la tornara-se imperiosa necessidade. É de crer que algumas vozes a tivessem denunciado com mais ou menos publicidade, mas somente chegou até nós o plano reformador saído da pena de quem sentira e meditara, teórica e praticamente, os deveres do senhorio, por a tal se considerar moralmente obrigado pela posição que ocupava no cimo da hierarquia social: o infante D. Pedro.


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