Glosando os ditos atribuídos a Platão de que “se deve chamar bem-aventurado e glorioso o mundo quando regnam os sabedores” e que “principe e sabedor todo seja uma cousa”, — o conceito de que o soberano iletrado é quasi asinus foi veementemente sentido pela “ínclita geração” como em nenhum outro tempo —, o mal-aventurado infante exprimiu na Virtuosa Benfeitoria a opinião de que o reino se corrigiria “mandando que cada huu bispado e religiom ordenassem certos collegios, e os studantes que em elles ouuessem, rrecebendo seus graaos fossem leentes por certos annos segundo se costuma em paris e em uxonya [Oxford] onde aos meestres se nom paga preço polla ensinança que geeralmente outorgam, porque em suas lecturas som obri-gados per iuramento. Por esta guisa enfloreceria a Coroa rreall com muytos letrados” (Liv. II, cap. 22).
O filósofo-moralista não se limitou a alvitrar esta opinião, cuja data não é possível determinar com exatidão. Descendo da teoria à realidade concreta, não hesitou em advertir D. Duarte, ainda príncipe, na famosa carta que lhe enviou de Bruges pelos anos de 1424-1428, “que a Universidade de vossa terra devia ser emendada, e a maneira vos escreverei segundo ouvi dizer a outro que nisto mais entendia que eu.
“Primeiramente, que na dita Universidade houvesse dous ou mais Colégios em os quais fossem manteudos escolares pobres, e outros ricos vivessem dentro com eles a as suas próprias despesas, e todos morasem do Colégio a dentro, e fossem regidos por o [principal?] que de tal Colégio tivesse carrego: a ordenança desto é tal.
“Em a Cidade de Lisboa e em seu termo ha da Universidade cinco ou seis Igrejas e em aquestas se podiam bem fazer outros tantos Colégios, e a cada um que tivesse um vigário, que desse os Sacramentos... que para aquele Colégio fossem deputados, e estes dormissem em um paço que tivesse celas e comessem juntamente em um lugar, e fossem çarrados de uma só clausura. Aquestes, Senhor, despois que houvessem dous anos em a Universidade fossem graduados e lessem por juramento, e havendo eles tal criação com o ajudoiro da graça de Deus seriam bem acostumados eclesiásticos, e ainda os Bispos com seus Cabidos poderiam fazer cada um Colégios para seus naturais e os monges pretos outro só para si, e os Cónegos Regrantes, outro, e os monges brancos outro, e ordenassem estes Colégios por maneira dos de Uxónia e de Paris, e assi creceriam os Letrados e as Ciências... e até disto se seguiria que vos acharieis letrados para oficiaes da Justiça e quando alguns vos desprouvessem terieis donde tomar outros, e eles temendo-se do que poderia acontecer serviriam melhor e com mais diligência...
“... e parece-me, Senhor, que se a vossa Mercê isto quisesse mandar haveria grande honra a terra e proveito por azo da Sabedoria que deve ser muito prezada, que a muitos tirou e tira de mal-fazer; mas deviam ser tais ordenadores, que já estiveram em as ditas Universidades, bons homens e avisados dos costumes, ou mandardes a alguém que vos escrevesse o regimento dos ditos Colégios”.
Nem o rei D. Duarte, nem o infante D. Henrique, como governador e protetor da Universidade, deram realidade a este plano, cuja execução talvez tivesse condicionado um ritmo mais acelerado e atualizado à nossa cultura quatrocentista, e, sem dúvida, teria modificado a estrutura tradicional da vida universitária, pela substituição do tipo estudantil de Bolonha e de Salamanca, sob cuja influição havia nascido e se organizara, pela do tipo magistral de Oxford e de Paris. De organismo corporativo de mestres e estudantes, governado predominantemente por escolares, teria passado a ser uma instituição na qual pesariam mais densamente as considerações científicas e as competições morais, sob o zelo, amor-próprio e autoridade dos principais dos Colégios.
Não teve execução, nem talvez a pudesse ter, pela resistência dos costumes inveterados e dos interesses consolidados, uma tão profunda reforma, que certamente lhe acudiu ao espírito pelo espetáculo do que vira talvez em Oxford e soubera dar-se em Paris, nos colégios universitários que povoavam a colina de Santa Genoveva e que fizeram deste sítio um dos lugares respeitáveis do Mundo. Por isso se compreende que nem o infante D. Henrique, nos largos anos que esteve à frente da Universidade, nem D. Duarte, nos breves cinco anos do seu reinado (1433-1438), nem o próprio infante D. Pedro, durante a regência (1440- -1446) na menoridade de D. Afonso V, a tivessem sequer iniciado. Foi um particular e por motivos piedosos, como particulares foram grande parte dos instituidores dos Colégios universitários da Baixa Idade Média, que os instituíam com fundações pias, quem lhe deu começo de execução, aliás sem continuidade: Diogo Afonso Mangancha, doutor in utroque jure, mestre em Artes e lente de Leis na “Universidade do Estudo” de Lisboa.
O plano do infante D. Pedro implicava a reforma da estrutura da Universidade, já velha de cento e cinquenta anos, durante os quais perseverou na mesma organização, estivesse em Coimbra ou em Lisboa, pois não foi a localização que lhe conferiu carácter. Universidade portuguesa, mais que Universidade de Lisboa ou de Coimbra, havia sido sempre a mesma, de sorte que o intento de D. Pedro representava um passo arriscado, que exigia o concurso de numerosas boas-vontades, a adaptação ou edificação de várias casas, e a renovação, porventura total, do corpo docente. Talvez por isto lhe não desse execução o infante D. Henrique, que aliás também deixou sucumbir a incipiente iniciativa do Dr. Mangancha, advertido, porventura, pelo instintivo senso prático, de que em instituições como as Universidades é quase sempre preferível, e sempre mais difícil, conservar e melhorar, do que inovar e erguer de raiz.
Mais propenso que o irmão a considerar a realidade empírica, na qual a atenção se prende com mais vigor à utilidade prática que à intelecção da harmonia racional, deixou-se guiar por outras ideias, em que o melhoramento do que existia lhe pareceu preferível à criação de um novo tipo de Universidade. Conquanto coerente com os factos, esta maneira de ver não deixa de ser uma conjetura; no entanto, qualquer que haja sido o sentir profundo do infante D. Henrique, é indiscutível que a sua doação de 12 de Outubro de 1431 significa o propósito de instalar o ensino completo das quatro artes do Quadrivium.
O facto é digno de consideração, mormente se se atentar em que a doação foi feita três meses depois de terem sido jurados os novos Estatutos da Universidade (16 de Julho de 1431), cujas prescrições ainda subsistem, em parte, na tradição coimbrã. Aprovados e jurados no fim do ano letivo de 1430-1431, seguiu-se-lhe a doação do infante no começo do ano letivo seguinte (12-X-1431), a bem dizer com a abertura das aulas. A correlação destes factos é manifesta, afigurando-se-nos claro que a doação é como que o complemento dos Estatutos: estes estatuíram as condições do exercício da vida escolar e o cerimonial da concessão dos graus universitários, aquela instalou decorosamente a Universidade e criou o ensino das artes reales, ou como hoje diríamos, acrescentou ao ensino das Letras (Gramática e Lógica) o ensino das Ciências (Aritmética, Geometria e Astronomia).
Anos depois, em 1448, consignou o infante a pensão anual de dez marcos de prata para sustentação do lente de Prima de Teologia, a qual elevou a doze marcos em 1460, que foi o ano em que faleceu. A intenção religiosa destas doações é manifesta, corroborada aliás por outros factos; analogamente, é verosímil que o estabelecimento do ensino das artes reales tivesse obedecido a outra faceta do seu espírito, ou seja a curiosidade pela Natureza, da qual João de Barros deu fé neste conhecido período da Ásia: “Pois acerca das letras, não tratando das sagradas, que ele per devoção e veneração muito amava, acerca das humanas era mui estudioso, principalmente na ciência da Cosmografia, de cujo fruito tem ora este reino o senhorio da Guiné, com todolos mais títulos que depois se acrescentaram à sua Coroa” (Década Primeira, cap. XIV).