A propósito da atribuição do secreto de los secretos de astrologia ao Infante D. Henrique

D. Pedro claramente o disse, ao afirmar expressamente que o esboço donde saiu o Trautado da virtuosa benfeyturia “seria hú livro assaz perteecente pera os principes e grandes senhores”; e D. Duarte também deu a entender haver sentido como que o dever de mostrar que “a diferença dos estados”, ou por outras palavras, a existência da sociedade civil, do Estado e da mútua cadeia que liga governantes e governados, estava fundada na razão e na consciência moral.

Testemunhando, assim, irmandade de propósitos, os dois moralistas e filósofos da Política propuseram-se problemas diferentes, embora coincidentes na mesma conceção orgânica do Estado. Vejamos quais foram, recorrendo mais uma vez aos próprios dizeres dos seus livros.

Fundado, talvez, mais em Egídio Romano que em S. Tomás de Aquino, e abonando-se mais diretamente com o Segredo dos Segredos, atribuído falsamente a Aristóteles, e com o Trautado do regimento da casa, do Pseudo-Bernardoescreveu D. Duarte no cap. 32 do Leal Conselheiro, “Ca segundo som tres regimentos: hilu da propria pessoa, outra da casa, e o terceiro da villa ou regno, assy em cada huu regimento ha certos erros, como se bem demostra em o livro do Regimento dos Principes, em que se declarom os pecados e fallicymentos que perteecem a todos estados, oficios e hydades.

“E a mym parece que as mais das gentes destes regnos, graças a nosso senhor, segundo a fraqueza da humanai geeraçom razoadamente se governam no que perteece as suas pessoas, mes no regimento das casas e vyllasnom tam bem. E alguíis teem que a grande avondança natural os faz seer menos cuydosos e sotiis pera se guardar das myn-guas. E por a ssegurança e largueza que ham de coraçoões, nom se avysam dos perigoos e malles que se podem seguyr. E porem se recrece nas casas e vyllas algúa myngua de nom boo regymento”.

A juízo do nosso rei-filósofo, que era aliás, como ele declara, o parecer dos “que trautam de moral fillosofia”, a vida moral carece de três “regimentos”, ou doutrinais: o da pessoa de cada um, na qual se compreende “alma e corpo”, o da casa, isto é, da família, e o da cidade e do reino, isto é, da vida social e política.

O primeiro está expresso nos mandamentos divinos. Prescritos por Deus, D. Duarte não pensou em investigar quantos são, nem quais eram os respetivos fundamentos racionais; somente diligenciou esclarecê-los, recorrendo à lição de filósofos e de teólogos, e à observação da sua experiência pessoal e alheia, numa palavra, misturando “moral fillosofia... com... mandados e dictos dos sanctos e catholicos sabedores”.

A seu juízo, a grande maioria dos portugueses “razoadamente se governam no que perteece a ssuas pessoas”, por forma que não considerou necessário ocupar-se com particularidade dos “mandados” deste regimento, na essência e no destino de carácter religioso, pois somente expôs os cinco motivos pelos quais podem deixar de ser cumpridos e que todos implicam “míngua de lealdade” com Deus.

Na vida doméstica e na civil, isto é, na do governo da família e do Estado, a situação era diferente. Os portugueses já davam mostras em tais assuntos de nem sempre procederem “razoadamente”, havendo quem pensasse que isto provinha de “que a grande avondança natural os faz seer menos cuydosos e sotiis pera se guardar das mynguas. E por a ssegurança e largueza que ham de coraçoões, nom se avysam dos perigoos e malles que se podem seguyr”.

Daqui a necessidade que a Família e o Estado têm de regimentos, ou por outras palavras, de diretórios ou doutrinais de normas éticas e de preceitos de previdência.

Os doutrinais das duas instituições fundamentais da comunidade tinham a seu ver objeto privativo, mas havia a ligá-los entre si e ao regimento da própria pessoa o traço comum de algumas virtudes fundamentais, à cabeça das quais D. Duarte considerou a lealdade, a cujo conceito conferiu amplo sentido ético e político.

Daqui a ilação de que o Leal Conselheiro foi estruturalmente pensado como “regimento da casa”, isto é, da vida matrimonial e familiar, tendo em vista, principalmente, a nobreza da corte, e porque a cadeia de deveres e obrigações que ligam o marido à esposa, os filhos aos pais, os servos aos donos da casa, entronca na Moral, daí resultou que D. Duarte tivesse escrito, de facto, uma suma de virtudes e de reflexões sobre os “pecados e outros falicimentos”.

A sua obra, tão pessoal pela fundura das análises psicológicas, tão característica da época pelo gosto das citações e das distinções conceptuais, tão representativa do endoutrinamento pedagógico como imperativo do sentimento moral, somente se torna compreensível a partir da conceção do Estado e da vida social como organização hierárquica de situações e de pessoas que mutuamente carecem umas das outras, a qual foi a conceção basilar do infante D. Pedro e cuja raiz procede das noções de unidade orgânica e de communitas perfecta, expressas frequentemente pelos tratadistas cristãos da Idade Média, e não da noção romana de sociedade, isto é, de uma ordem jurídica fundada no reconhecimento e garantia do direito subjetivo. É por isto que a lealdade, a cujo conceito D. Duarte atribuiu larga extensão, se torna a virtude primária, tanto no regimento da própria pessoa, nas relações consigo mesmo e com Deus, como nos regimentos da casa e do reino, isto é, nas relações entre as pessoas de família e domésticos, e entre os súbditos e o soberano. E é ainda por isto que o Leal Conselheiro não deve ser lido como dissertação de quem livrescamente e fora da vida pusesse os olhos em certos autores e se deixasse cativar de certas tradições literárias, políticas ou moralistas. A raiz primeira do seu tema foi, pois, “o regimento da casa”, mas porque a sua casa era a casa de um rei, o Leal Conselheiro deveio um livro adequado às responsabilidades, aos deveres e à paz da consciência de soberanos, de grandes senhores e de cortesãos.

Não assim, sob certo ponto de vista, o Trautado da virtuosa benfeyturia, pois teve por ponto de partida “o regimento do reino e cidade”, para empregar a terminologia que o autor do Leal Conselheiro colheu em tratadistas medievais. D. Pedro pôs os olhos, com efeito, na estrutura do Estado e na razão de ser do vínculo que converte o ajuntamento humano em communitas perfecta, embora a sua atenção de escritor se tivesse detido especialmente na justiça distributiva, ou mais precisamente nas “cousas, que ao bem fazer som compridoyras”.

Ao contrário de D. Duarte, o infante D. Pedro pensou logo de início o Trautado “pera os principes e grandes senhores”, dedicando-o até ao herdeiro presuntivo da Coroa, para que visse “como em spelho” o doutrinal do perfeito soberano no cabal desempenho dos deveres que consistem em retribuir benefícios e em conceder recompensas; porém, ambos foram concordes na conceção, a que deram desenvolvimento diverso, de que a sociedade é um sistema de mútuas relações e dependências, no qual o inferior serve o superior e o superior serve o inferior, dirigindo-o e recompensando-lhe os serviços, e de que o fim da atividade política é essencialmente moral, isto é, a orientação da ação no sentido de todos os indivíduos poderem viver virtuosamente, que é o destino final da vida em sociedade.

Defendendo estas conceções, D. Pedro e D. Duarte eram eco algo retardatário de teorias dominantes nos séculos XIII e XIV e se decoravam com o prestígio de expositores da categoria de S. Tomás de Aquino e de Egídio Romano. Não obstante, parece ter havido quem as criticasse, como aliás não podia deixar de ser em tempos em que o romanismo ensaiava os primeiros passos entre nós, os ânimos se alvoroçavam com o legado laicizante e anti-hierárquico de Marsílio de Pádua († 1342) e de Guilherme Ockam († 1349), em Constança (1414-1418) se debatia a reforma do governo eclesiástico pelo Concílio, e, ainda, por versarem, praticamente, matéria tão disputável como é a ação política, e, teoricamente, o sempre inflamável problema que consiste em encontrar a harmonia do Estado e da Igreja no ideal da communitas perfecta, se como dois círculos de raio diferente, se concêntricos mas independentes, se coincidentes numa só unidade orgânica.


?>
Vamos corrigir esse problema