Levaria longe o exame destes problemas, assim como o desvendar no pensamento político da época, de inegável intencionalidade cristã, o grau de penetração da conceção romana, notadamente de Cícero, cujo livro Dos ofícios D. Pedro traduziu (?), a qual exclui toda a transcendência e concebe a sociedade como um sistema de esferas de atividade delimitadas e garantidas pelo Direito. São temas que na ordem teórica suscitavam posições ideológicas diversas, e a que D. Pedro procurou atalhar sabiamente com o Trautado da virtuosa benfeyturia e, depois dele, D. Duarte, como que incidentalmente, lembrando aos defensores da teocracia um passo das Colações de João Cassiano, para se abonar com tão grande autoridade e poder dizer aos monges que era seu dever renunciarem à propriedade, ao pecado e à atividade secular não necessária, e que “creer devemos que todos possuymos razoados estados pera bem vyvermos na presente vyda, e pera cobrar a outra com a graça de nosso Senhor, se per nossa myngua ou desaventura, que de pecados e fallicymentos as mais vezes se recrece, nom formos torvados”.
Vistos a esta luz, o Leal Conselheiro e a Virtuosa Benfeitoria completam-se mutuamente, testemunhando um e outro com franca sinceridade o acordo na mesma conceção política, a admissão de idêntica tábua dos deveres inerentes ao exercício da soberania e igual concordância na inseparabilidade da Moral e da Política.
De tão breve e superficial paralelo salta à vista que D. Pedro e D. Duarte endereçaram predominantemente a reflexão para os temas da teoria política e da conduta moral que a situação intelectual e social lhes ditavam como mais urgentes e necessários.
O tema da concessão de benefícios, que é o objeto capital do Trautado da virtuosa benfeyturia era, com efeito, problema vital para um rei que queria ser fundador de uma dinastia e que, na reorganização do Estado, teve de selecionar os seus servidores, de castigar defeções, de recompensar os sacrifícios e as dedicações que o ajudaram a vencer e a ascender ao trono.
E o tema da lealdade, que é a seiva e como que o polo dos cento e três capítulos do Leal Conselheiro, aparentemente dispersos e sem norte, também era outro tema não menos vital, como virtude a um tempo necessária ao mútuo encadeamento da “virtuosa benfeitoria” e à estabilidade de um trono que sentia o regougar dos inimigos externos e o malsinar dos adversários e descontentes internos.
A avaliar pelos atos, únicos testemunhos diretos do seu pensamento, o infante D. Henrique não sentiu tão intensamente como os irmãos mais velhos a atração pelos problemas concretos da Filosofia política e moral.
Filho terceiro de um Homem ditoso pelos incomparáveis serviços que pôde prestar a Portugal e pela geração e criação de uma família, que foi a justa recompensa dos zelos e virtudes de pai e de soberano, reto, equânime, de ânimo ardido mas não caprichoso e arbitrário, D. Henrique parece ter considerado que a sua missão de membro da família reinante não consistia em refletir sobre a orgânica do Estado e sobre a ética da vida de relação, mas em atuar sobre o possível que estaria para além da fronteira marítima do Estado, como sítio a conhecer, como gente a trazer para a fé católica, como riqueza a adquirir, como incentivo da formação do carácter ao calor do ideal da Cavalaria e da Vida como milícia espiritual.
Como os irmãos mais velhos, que depreciaram a evasão da imaginação para o mundo da fantasia — repare-se em que não aplicaram os dotes literários em ficções e novelas de cavalaria e tudo o que lhes saiu da pena tem travação lógica ou autoridade abonatória —, D. Henrique somente deu valor ao que era prático, concreto, exato.
Para os irmãos, o prático e o concreto, estavam no pensamento da orgânica do Estado, no acerto de algumas medidas de interesse para o reino, no esclarecimento das ideias e sentimentos que convertem a multidão em comunidade política, nos escrúpulos da consciência moral e até, como D. Duarte, na técnica Da Ensinança de Bem Cavalgar toda Sela (1433-1438); para D. Henrique, a avaliar pelas suas doações à Universidade, o concreto eram os conhecimentos das artes reales do Quadrivium e o desenvolvimento do ensino da Teologia, e, a avaliar pelas suas iniciativas de descobrimentos marítimos, o saber do não-saber, no sempre vivo e expressivo dizer de sabor platónico.
Talvez se não desvende nunca o mistério que envolve a génese e intuitos das primeiras viagens henriquinas, mas é óbvio que o infante não teria aparelhado as caravelas nem encontrado capitães e gentes de bordo, se o arrojo da valentia não tivesse sido iluminado por um raio de razão que convence.
Marchar às cegas e acertar, guiado somente pelo instinto vital, é dom de animais, que não de seres onde amanheceu a razão, ou por outras palavras, a dúvida acompanhada do desejo de alcançar a certeza pela solidez dos fundamentos e a paz da consciência pelo acerto premeditado das ações; por isso, o infante D. Henrique careceu de se convencer a si mesmo, e de convencer capitães e tripulações, de que não iriam navegar com rumo ao suicídio, porque o que diziam do mar largo e do termo da Terra talvez não fosse verdadeiro e algumas razões haveria para crer que a verdade se poderia alcançar sem o risco fatal das vidas embarcadas.
Quando se atenta na preparação minuciosa da expedição a Ceuta (1415), desde a recolha de informações à ponderação de prós e contras em conselhos de Estado, e se repara no facto de D. Henrique ter participado nela e ter tido conhecimento dos preliminares, torna-se inconcebível a sua iniciativa descobridora sem o norte de alguns conhecimentos: negativos uns, porque abalavam o crédito do que se dizia acerca do sítio da Terra habitável, ou seja o saber do não-saber, que é sempre a condição incitadora da investigação da verdade; positivos outros, por os considerar exatos e prospetivos.
Não é possível indiciar com segurança quais hajam sido uns e outros. Uma vez mais, só o campo solto das conjeturas.
Damião de Góis imaginou na Crónica do Príncipe D. João (cap. VII), que Estrabão, Plínio, Cornélio Nepos e Pompónio Mela haviam sido dentre outros, “os verdadeiros autores em que continuamente estudava, crendo o que escreviam como cousas escritas por homens e assi as cria, e duvidava, como se deve fazer a todalas que dos homens e de seus juizos procedem, nas quais, com a certeza, está sempre junta a dúvida”.
O insigne historiador-humanista, para quem a Idade Média era intelectualmente inexistente, escreveu o nome destes autores ao sol alto da Renascença. Com o sentido acrónico tão característico da sua época, não lhe passou, decerto, pela mente, que poderia dar-se o caso de tão afamados escritores da Antiguidade Clássica, cujas páginas ele lia em cómodas edições tipográficas, não terem sido lidos pelo infante D. Henrique, pela razão simples de não correrem então em manuscrito, e da presumível cultura livresca do infante ser inteiramente medieval.
Com efeito, não há testemunho algum, documental, de citação, de alusão direta ou de mera relação de inventário bibliográfico, que indicie terem sido conhecidos na época henriquina escritos de Estrabão, de Plínio, de Cornélio Nepos e de Pompónio Mela; e por outro lado, tudo concorre para estabelecer que as suas leituras científicas radicavam em fontes medievais, à frente das quais cremos que deve pôr-se a obra de Afonso o Sábio, como adiante acentuaremos, e cuja feição enciclopédica e de compilação podia proporcionar a satisfação de diversas curiosidades intelectuais, da História à Ciência dos astros.