Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

É afirmação vulgar, mormente depois da introdução com que o Visconde de Santarém enriqueceu a edição parisiense da Crónica do Descobrimento e Conquista de Guiné (1841), a vasta ilustração de Gomes Eanes de Zurara e o valor da sua obra como índice do “estado das Ciências e da Erudição entre nós no fim da Idade Média”. Pelo crédito justificadíssimo deste diligente erudito, de tão levantadas e esclarecidas intenções patrióticas, e pelo cuidado com que fundamentou a sua opinião, coligindo e classificando os autores e livros citados pelo cronista, esta afirmação, pode dizer-se, passou em julgado. Em 1892, o Dr. Teófilo Braga, baseando-se no explicit da mesma Crónica, em que o autor declara tê-la acabado na livraria de D. Afonso V, em 1453, e tomando à letra o alarde de erudição de que ela faz gala, disse que Zurara dispunha de uma grande biblioteca e pelas suas citações pode-mos recompor a livraria de D. Afonso V”.

Mais recentemente, em 1915, o Sr. Esteves Pereira, que da Crónica de Ceuta fez uma edição monumental, de copiosa informação, como tudo o que sai da pena do insigne orientalista, afirma ainda a “grande erudição literária” do autor, embora observe que “os conhecimentos literários de Zurara não eram provavelmente profundos, mas mostram-se extensos”.

Em face destas afirmações, que atingiram alguns dos manuais em uso nas escolas, e da própria confissão do cronista, que refere ter lido “muy gram parte das cronicas e liuros estoreaes” ao inventariarmos as fontes e documentos da nossa cultura de Quatrocentos, em ordem a surpreendermos-lhe os testemunhos da cultura filosófica, não podíamos deixar de atentar nas obras de Zurara.

Ao lê-las, com tal propósito, a par de passagens de clara sigla pessoal, de quem expõe ideias próprias, e de outras de desconhecida tradição, como a que aproxima surpreendentemente certo passo da Crónica de Ceuta ao período inicial do Discours de la Méthode, de Descartes, impressionou-nos a repetição de algumas ideias, conceitos e citações que havíamos lido já no Trautado da Uirtuosa Benfeyturia, do infante D. Pedro. Fizemos o cotejo, e notámos tão grande identidade que não pudemos deixar de concluir que Zurara transcreveu, sem as citar, numerosas passagens daquele interessante livro.

Reproduzimos adiante, a duas colunas, alguns dos textos que, sem intuito de exaustão, encontrámos.

O que desde logo ressalta, é a circunstância das passagens transcritas versarem assuntos de configuração geral, justamente as que melhor poderiam exprimir a ilustração filosófica de Zurara; e se se atender aos autores citados, algumas conclusões interessantes se poderão coligir relativamente à erudição do nosso cronista.

Antes de mais, é de notar que estes plágios não devem aferir-se pelo escalão dos nossos sentimentos atuais de probidade literária ou histórica, cujas origens, a quem quer que as perscrute, surgirão como modernas. Não se viu ainda em pleno século XVIII talentos como os de Diderot e D'Alembert introduzirem na Enciclopédia páginas de Condillac, Buffier, etc.? Tais deflorationes, tão vulgares na filosofia medieval, constituindo até uma das maiores dificuldades da crítica interna da literatura deste período histórico, encontram a explicação na atitude intelectual do escritor. É que este não tinha a preocupação da originalidade, mas a de ser completo e verdadeiro, pouco lhe interessando que a verdade, ou o que supunha tal, já tivesse sido descoberta e formulada. Apropriava-se dela, como património comum ou dádiva do Senhor, contente e seguro de si, sem que a consciência lhe levantasse reparos. Não se julgue, porém, que isto afeta grandemente o valor histórico da obra de Zurara. Não.

Embora haja em numerosos passos das suas Crónicas, especialmente nas mais tardias, a tendência a afetar retoricamente os assuntos e relatos, marginando-os de glosas em que deixa expandir com satisfação impressões pessoais, narrando, por vezes, com tanta liberdade que no relato intervém diretamente; embora abundem as declamações, as digressões eruditas ou pseudo-eruditas, as prosopopeias, as reflexões morais  e as invocações, que fazem de Zurara um retórico avant la lettre, o certo é que são ainda ricas de material historiográfico e de conteúdo histórico-cultural, especialmente valioso este último pela vibração de sinceridade e de contemporaneidade que transmite.

Zurara procurou documentar-se por qualquer “guisa”, já vendo documentos, já interrogando os que comparticipavam nos feitos que descreve, quer fossem príncipes ou senhores, quer obscuros homens do povo, — embora reconhecesse a variedade e variabilidade dos testemunhos. Não é, porém, do historiador, da sua conceção da história, das fontes a que recorreu, ou da obra que realizou, que queremos tratar. Esta interessa-nos apenas, neste momento, como expoente da erudição de Zurara.

Em face das abundantes citações em que o seu espírito, retrato da época, se compraz, podem formular-se perguntas diversas, com diferente objetivo.

Pode perguntar-se, por exemplo, tendo em mira a formação intelectual do cronista, se o conhecimento da literatura que cita lhe teria advindo pela leitura, já na idade adulta e, portanto, autodidaticamente, ou se não provinha em parte dos tempos da escolaridade, da qual um passo da Crónica de Ceuta sugere que aprendera a Lógica, ou Dialética, segundo o método disputativo então em voga no ensino das Súmulas Lógicas de Pedro Hispano.

Pode perguntar-se também, com vista à procedência das citações, se todas elas pertencem diretamente a Zurara ou se uma ou outra lhe não teria sido dita pelos próprios a quem recorrera para obter informes dos acontecimentos que relatava. Assim, é legítimo admitir que o infante D. Pedro, que lhe “contou gram parte” do que se passou no conselho que D. João I convocou para decidir o ataque a Ceuta (C, cap. XIII), ao tempo em que tinha “carrego do regimento destes regnos”, tivesse entremeado o relato de uma ou outra citação abonatória de qualquer sentença ou consideração geral.

Finalmente, pode ainda julgar-se intrinsecamente o conteúdo do saber de que as citações são ou parecem ser a vestidura externa. Zurara deu largas à tendência enciclopédica, que é uma das características comuns aos escritores da Idade Média. Poetas, como Dante, oradores sacros, teólogos, filósofos, todos sacrificaram ao gosto das citações e da exibição de conhecimentos variados. A esta luz, e tendo em vista a ilustração dos tempos em que viveu, Zurara é um compilador modesto, se o compararmos com alguns grandes do século e até mesmo com o autor da redação definitiva da Virtuosa Benfeitoria; e levando mais fundo a observação, até pode pensar-se que o saber de que dá mostras é um saber de última hora, não muito consistente, e que o abuso das citações lhe prejudicou a investigação direta e o esforço de aprofundamento e de clarificação.

No que se segue, nada disto nos ocupará diretamente, porque limitaremos a indagação a procurar na obra do grande cronista de Quatrocentos o que ela acusa do conhecimento bibliográfico das literaturas grega, latina, patrística, árabe, hebraica, e das obras filosóficas, históricas e literárias medievais. Investigação ingrata, nem por isso deixa de ser instrutiva, e até fundamental para a compreensão da índole que o Saber teve entre nós na derradeira quadra da cultura medieval.

I) ESCRITORES GREGOS


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