Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

III) PADRES DA IGREJA

Zurara mostra um conhecimento exíguo e superficialíssimo da Patrística, nem de longe nem de perto comparável ao trato que teve com algumas páginas de escritores latinos, quer no original, quer em versão portuguesa.

Este facto, coordenado com o também escasso conhecimento da obra dos Doutores da Idade Média, inculca que o cronista não aplicou a juventude à formação intelectual que lhe abrisse o caminho da carreira eclesiástica, parecendo confirmar-se assim o informe de Mateus de Pisano, de que chegara à idade adulta sem instrução literária, e a hipótese de Esteves Pereira, de que fora mandado ensinar por D. Afonso V “como os filhos dos fidalgos, que era instruídos no Paço”.

Expressamente, apenas aparecem orneados por sua iniciativa, isto é, sem ser em falas, prédicas ou transcrições de outrem S. Jerónimo, S. João Crisóstomo, Santo Agostinho, Paulo Orósio e Santo Isidoro de Sevilha.

De S. Jerónimo, cita unicamente a “Epístola a Nipociano” (C, 12), “os prólogos da Bíblia” (D, 9) e a “Obra a Paula e Eustochio” (P, 217), além de referências nominais (D, 8; G, 36) sem qualquer especificação.

A primeira destas obras, não é a Epistola [LH] ad Nepotianum, de vita clericorum et monachorum, e pelos termos em que a invoca não parece que o cronista a conhecesse de leitura direta. As citações de Zurara, com expressa referência ao autor ou ao livro, assim como os plágios sem qualquer alusão ao texto que utiliza, apresentam-se normalmente com literalidade ou, pelo menos, com fidelidade no essencial, mas a menção desta Epístola mais parece deturpação que citação.

Com efeito, S. Jerónimo é invocado para abonar a opinião de que “os velhos per natureza, per rrezam do esfriamento do sangue, perdem muitas cousas que na mançebia aprenderam” —, e a citação tem evidente paralelismo com esta outra de Vasco Fernandes de Lucena:

“... diz S. Hyeronimo em hila epistola que escreveu a Ponciano, que sendo elle mancebo, todas as couzas fazia vivamente, mas despois que a cabeça foi caã e a face emrugada, logo hü sangue frio lhe cercou o coração, e assim a mancebia soporta todas as couzas pela abundança e agudeza dos spiritos quentes, mas os velhos esquecem muitas couzas, e a voz se lhes apega ao paladar...”.

É possível que a citação tivesse ocorrido aos dois contemporâneos e validos da corte; no entanto, quando se atenta no facto de Zurara ter lido a tradução que Lucena fez do De ingenius moribus et liberalibus studiis adulescentiae, de Vergério, como adiante veremos, é-se levado a admitir por mais plausível a anterioridade da citação de Lucena, a cuja obra de tradutor se aplicou, como se aplicou às demais traduções diretamente ligadas à atividade ou ao estímulo dos “altos Infantes”. Demais, na Epístola de S. Jerónimo o contraste entre a mocidade e a velhice, larga, documentada, conceituosa e belamente exposto, não apresenta um período de que a citação de Zurara seja tradução. O cronista como que desvirtua a intenção de S. Jerónimo, que é o alcance e a conservação da santidade da vida, diminuindo-a à insignificância de um lugar comum a que faz apelo para justificar o escasso valor do testemunho dos velhos relativamente a acontecimentos contemporâneos da mocidade que viveram.

A citação de “todolos prologos que [S. Jerónimo] escreveo per entrudução dos livros da Briblia” (D, 9) é tão ampla e vaga que gera incoercivelmente a suspeita de não corresponder a leitura direta.

Sob outro ponto de vista, porém, não pode esquecer-se que Zurara encabeçava frequentemente os seus capítulos com máximas, ideias gerais ou proposições conceituosas; pelo que é legítimo conjeturar que lhe ocorresse percorrer os “prólogos” do tradutor da Vulgata com o fim de colher sugestões, modelos ou pontos de partida para digressões e razoamentos.

A imprecisão da referência não permite determinar o prólogo ou prólogos que teria em vista, pois a citação obedece apenas ao propósito de corroborar a existência de “linguas mordazes” e de tornar consequentemente explicável que ele cronista tivesse muitos “espreitantes, que ainda eu bem não tomo a pena na mão pera escrever, já comção de damnar minha obra” (D, 9). No fundo, mais outro lugar comum, mas um lugar comum que ao abonar-se com S. Jerónimo verte na abonação a acrimónia de um despeitado, longe da equanimidade do contemporâneo Vasco Fernandes de Lucena, cuja referência a estes mesmos escritos quem. sabe? — talvez tivesse sido o estímulo incitador desta citação de Zurara.

A terceira citação hieronimita está igualmente desprovida de sentido religioso, escriturário ou teológico. Ocorre na Crónica do Conde D. Pedro, incidentalmente, para abonar a tenção que “quisera” de não continuar a redação das crónicas depois de haver escrito a da Tomada de Ceuta, “porque parece, segundo diz Sam Jeronimo, que se eu fezera empreita d'esparto, ou esteiras de junco, pero que o ganho fôra pouco, ao menos me podera escuzar de reprensão, da qual som certo, que nenhum Autor de novo Livro possa ser escuzo, caa David tam Santo Propheta tanto clamava ao Senhor Deos pedindo-lhe, que o guardasse das linguas reprensoras e mordazes, como elle tantas vezes o refere em sua Obra a Paula e Eustochio” (P, 217). A citação tem todo o ar de ser direta; não obstante, não lográmos identificá-la com exatidão, visto o passo se não reportar com clareza a nenhuma das epístolas nem ao Ad Paulam et Eustochium de Assuntione Beatae Mariae Virginis Sermo e ao Ad Paulam et Eustochium de virtute Psalmorum.

A referência incidental a S. João Crisóstomo, na Crónica de Guiné, parece de segunda mão, como dá a entender a palavra “dicto”.

Outra referência sem especificação é a que faz, nesta mesma Crónica, às “sentenças de Sam Tomas, e de sam Gregoryo, sobre o conhecimento que ham as almas daquelles, que lhe em este mundo aproveitarom ou aproveitam (p. 10). Pelo que a este respeita, teve em vista, sem dúvida, S. Gregório Magno (†  590) e se a citação procedia de leitura direta, o que não é crível, pela voga de juízos e máximas do famoso Pontífice, é bem possível que procedesse do quarto livro dos Diálogos, consagrado à imortalidade da alma, o que aliás não verificámos.

As citações de Santo Agostinho, ao contrário das que acabámos de referir, têm algum semblante de leitura direta. Da vasta obra do Bispo de Hipona, de que o Infante Santo, D. Fernando, parece ter sido leitor assíduo, somente refere expressamente a Cidade de Deus (C, p. 38; G, 77 e 148), mas temos por seguro que leu também as Confissões, cujo passo do cap. III do livro V relativo à Astrologia está subjacente à seguinte referência da Crónica de Guiné: “posto que santo Agustinho screva muytas e santas pallavras, reprovando a predestinaçom das influencias cellestriaaes, em outras partes me parece que acho autoridades contrairas, assy como de Job” (G, 147).

Zurara considerou esta opinião como a mais grave objeção contra a Astrologia, mas, para além disto, a índole da citação mostra que o cronista esteve longe de apreender o pensamento filosófico ou teológico do Bispo de Hipona.

Nas duas obras que viu, — se as viu — notou somente, e como que de fugida, o que contrariava ou condizia com a substância das ideias e valores que o orientavam e constituíam o ideário vigente na corte portuguesa, sem se esforçar por apreender o pensamento agostiniano na sua peculiaridade. Daí, a feição subsidiária das citações, bem patente no seguinte passo da Crónica de Ceuta (p. 38); “de trinta e hüa virtudes que ao principe som apropriadas, muito lhe comvem que seja cautelloso, segundo escpreve Samto Agustinho no liuro da çidade de Deos, louuando muito em os Romaãos o seguimento desta virtude”.


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