Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

A medievalidade da citação é transparente, e se dúvidas houvesse, dissipava-as este passo decisivo da Crón. de Guiné (p. 77): “ca costume era antre os Romaãos, segundo poem santo Agostinho, naquelle livro que fez de civitate Dey, e Titollyvyo em suas decadas, que todos aquelles que primeiramente feryam nas batalhas, ou entravam em muros, ou saltavam em navyos, per conseguinte lhe davam avantajados acrecentamentos em sua honra, os quaaes levavam no dya do triumpho, em testemunho de sua vertude, segundo mais compridamente reza Valleryo, na soma que fez da estorya romaã”.

Do discípulo e amigo de Santo Agostinho, Paulo Orósio, bracarense pelo nascimento, como parece, cita Zurara na Crónica de Guiné (pp. 290-291) o nome e um passo que é tradução de uma passagem do liv. I, cap. II, da Historia adversus paganos, ou Moesta Mundi. O passo  não oferece hoje dúvidas: o Visconde de Santarém apontou-lhe a fonte e pôs em relevo a alteração do nome Musilon Emporium, do texto de Orósio, em Mossile Nemporyo, do passo da Crónica; e o Dr. Duarte Leite descobriu que não só o passo, mas todo o cap. 61 a que ele pertence, foi totalmente traduzido da General Estoria, de Afonso o Sábio.

Daqui a ilação que o insigne professor tira de que “o cronista não consultou os Adversus paganos historiarum livri VII de Paulo Orósio, donde foi mal extraída para a General Estoria a notícia sobre o Nilo do cap. 61.° da Crónica, pois o Mussilon do § 6.° do seu livro I está trocado no texto espanhol por Mossile Nemporyo, troca que se repete no português. O autor bracarense não torna a ser mencionado nos escritos do cronista, que o desconheceu...”.

A existência do plágio e, sobretudo, o facto do Adversus paganos não voltar a aparecer, clara ou veladamente, como fonte de qualquer passo das Crónicas são realmente indício de que Zurara não leu com algum vagar a obra de Orósio; porém, a nosso ver, não fundamentam o juízo terminante do Dr. Duarte Leite, porquanto temos por seguro que Zurara se rodeou das obras históricas que lhe foi possível consultai., dando assim crédito à declaração da Crónica de Ceuta (cap. XXXIX) de que lera “muy gram parte das cronicas e liuros estoreaaes”. O Adversus paganos ou Moesta mundi, era um destes livros. Demais, escrito por conselho de Santo Agostinho e de cujo De civitate Dei se pode considerar como complemento, este livro teve larga voga na Idade Média, sendo desnecessário remontar, como fez o Visconde de San-tarém, às “relações literárias entre a península hispânica e os povos e nações setentrionais nos primeiros séculos da Idade Média” para justificar o seu conhecimento na época de Zurara. Sendo admissivel que existisse em livrarias seculares, é no entanto de notar que Orósio não aparece citado por contemporâneos de Zurara.

Finalmente, cita ainda Santo Isidoro de Sevilha († 636), o famoso bispo hispalense, cuja obra no autorizado juízo de Bardenhewer cerra o ciclo designado de Patrística, e cujo saber o acreditou como o mais douto varão do seu tempo.

Refere-se expressamente à copiosa enciclopédia Etymologiarum sive Originum libri XX, de tanta voga e influência, e em especial aos livros IX (G, 10) e XV (G, 12), além de aludir ao nome do sábio bispo nos caps. 35 e 36, da Crón. de Ceuta, sendo neste último nos seguintes termos: “... ata o tempo que a (Ceuta) o conde Juliam entregou aos mouros quando por vingança delRey Dom Rodrigo primeiramente os mouros passarom em Espanha, segundo conta Santo Isidro, e mestre Pedro e Dom Lucas de Tuy”.

Na opinião do Dr. Duarte Leite, “isto é tirado de qualquer crónica de Espanha, pois veremos que Zurara desconheceu os escritos do segundo autor mencionado e o mesmo digo do terceiro, cujo nome não acode mais à sua pena”. Daí, o convencer-se que Zurara desconheceu a obra do famoso hispalense.

São evidentemente de ponderar estas razões; não obstante, a repetição das citações e, sobretudo, as referências concretas aos livros IX e XV das Etimologias, na Crónica de Guiné, que o Dr. Duarte Leite parece não ter considerado, denotam, a nosso ver, a consulta direta, tanto mais admissível quanto é certo que as Etimologias foram largamente utilizadas entre nós durante toda a Idade Média.

IV) TEÓLOGOS E FILÓSOFOS ESCOLÁSTICOS

O conhecimento que Zurara possuiu da literatura propriamente teológica e filosófica medieval foi ainda mais escasso que o da literatura patrística, tão escasso que talvez deva considerar-se nulo, se dela excluir-mos as páginas de teorização e de diretriz política de Egídio Romano.

À primeira vista, este juízo parece opor-se ao rol de nomes que as citações externamente consideradas permitem organizar, e Esteves Pereira organizou em continuação do primeiro inventário que o Visconde de Santarém coligira com base na Crónica de Guiné.

Deixando de lado as graves objeções ao critério com que classificou e distribuiu as citações, Esteves Pereira apresentou a seguinte relação:

Padres da Idade Média: S. Bernardo, S. Tomás de Aquino, Alberto Magno [e Santo Anselmo].

Escritores da Idade Média: Paulo Orósio, Isidoro de Sevilha, Lucas de Tuy, Rodrigo de Toledo, Pedro d'Ailly (Petrus de Alliaco ou Petrus Lombardus), Egídio, Frei Gil de Roma, João Duns Escoto.

Bastariam as citações de Alberto Magno, S. Tomás de Aquino, Pedro Lombardo, Egídio Romano e Duns Escoto, para acreditarem que Zurara não fora, pelo menos, hóspede com alguma assiduidade na teologia e na filosofia escolásticas --, sob condição, bem entendido, das citações serem pessoais, diretas, apropriadas, e das identificações serem exatas. Ora a crítica interna contesta tudo isto.

Com efeito, quanto à origem das citações, as transcrições literais tiradas da Virtuosa Benfeitoria, como se pode verificar adiante no apêndice (A), estabelecem sem sombra de dúvida que estamos em face de meros plágios, cuja literalidade não consente qualquer juízo positivo acerca das leituras do cronista relativamente aos autores citados nos períodos plagiados.

Demais, é ainda de notar que, com uma só exceção, os autores citados nestes períodos não ocorrem em qualquer outro passo das Crónicas —, donde a confirmação de que Zurara os não lera nem consultara diretamente. São os seguintes:

Na Crónica de Ceuta: Mestre das Sentenças, isto é, Pedro Lombardo, Santo Anselmo (de Cantuária), e Alberto [Magno], citando destes últimos exatamente os mesmos livros, respetivamente, “o liuro do conçebimento virginal”, isto é, o De conceptu virginali et de originali peccato, e “o primeiro capitullo da çelestrial gerarchia”, isto é, o De coelesti hierarquia, com que abrem os Commentarii in Dyonisium Areopagitam.

Na Crónica de Guiné: S. Tomás de Aquino, com idêntica citação da Suma Teológica (II, p. II) e do De potentia Dei, e Alberto [Magno], referido ao mesmo livro Da celestial gerarquia.

Como dissemos, estes autores e livros não são citados em qualquer outra página das Crónicas, salvo S. Tomás de Aquino, no seguinte passo da Crón. de Ceuta, mas em termos tão gerais, que antes exprimem um lugar comum do que o contato, sequer ligeiro, com a obra: “E posto que o juizo dalma seia soomente no comspeito de nosso Senhor Deos, o quall segredo quis que nom soubesse nenhüua pessoa uestida em esta carne humana, todollos sabedores, espeçiallmente san Thomas, que por comtemplaçom diuinall sobio ao monte do uerdadeyro saber, tem que quando a criatura açerqua de sua fim ha uerdadeyro conhecimento do Criador, e se arrepemde amargosamente dos seus peccados, que o juizo deste he uerdadeyra saluaçom” (P. 125).


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