Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

A verificação destes factos obriga, pois, a eliminar da relação organizada por Esteves Pereira os nomes de Santo Anselmo, Alberto Magno, S. Tomás de Aquino e Pedro Lombardo.

A eliminação das pseudo-leituras, porém, tem de ir mais longe. É que o Visconde de Santarém e, em seu seguimento, Esteves Pereira, fizeram identificações que não são exatas.

Tais são as que os levaram a escrever que Zurara havia citado Petrus Alliacus e João Duns Escoto.

A identificação de Petrus Alliacus (Pierre d'Ailly pertence originariamente ao Visconde de Santarém, repetindo-a Esteves Pereira em termos de maior confusão, porque além de aceitar o erro inicial do Visconde de Santarém acrescentou-lhe o da identificação de Petrus Alliacus com Petrus Lombardus, como se depreende da sua redação: “Pedro d'Ailly (Petrus de Alliaco ou Petrus Lombardus)”. Ocorreu a identificação àquele insigne erudito como explicação do passo da Crónica de Guiné (cap. LXI) em que Zurara se abona com a opinião de “mestre Pedro” para dar notícias acerca da cidade de Meroe. Em seu juízo, o “mestre Pedro” era “o famoso Petrus Aliacus ou de Aliaco, no seu livro Imago Mundi, acabado em 1410, livro que teve grande voga no XV.°, e ainda no XVI.° século” (p. 291, nota).

Seria, na verdade de alcance histórico, no que toca à gestação intelectual e ao pecúlio das conceções que formaram o ambiente científico das empresas henriquinas, apurar com exatidão se o Tractatus de imagine mundi fora conhecido em Portugal no segundo terço do século XV. Sabida a influência da leitura deste livro nas conceções científicas de Cristóvão Colombo, que lhe comentou algumas passagens —, sabê-la foi urna das novidades histórico-geográficas do primeiro quartel do século XIX à qual o Visconde de Santarém, após Alexandre de Humboldt, deu impulso no vol. III (Paris, 1852) do Essai sur l'histoire de la Cosmographie et de la Cartographie pendant le Moyen-Age… é óbvio que a existência da citação do nome do autor do Imago Mundi constituía uma presunção de importantes consequências, designadamente em relação à primitiva finalidade dos descobrimentos portugueses.

A identificação, porém, que passou em julgado, com raras adversativas, até 1941, isto é, até à revisão crítica do Dr. Duarte Leite, que aliás não evitou que ela reaparecesse recentemente, não pode ser admitida nem utilizada com esta finalidade pela razão simples de não ser exata. É que a citação não se reporta a Petrus Alliacus nem ao seu Tractatus de imagine mundi, mas à divulgadíssima Historia scholastica, de Pedro Comestor, ou Manducator, cuja influência ainda se fez notar no nosso século XVI e é bem visível no Esmeraldo de situ orbis, de Duarte Pacheco Pereira.

Além disto, já de si decisivo como se pode ver no apêndice (B), todo o cap. 61 da Crón. de Guiné, no qual ocorre a citação, foi inteiramente plagiado da General Historia, de Afonso o Sábio, como mostrou o       Dr. Duarte Leite. Revisámos por via diversa o seu juízo, e chegámos a resultados idênticos; por isso o seguimos quando escreve que o Visconde de Santarém se enganou “vendo no mestre Pedro o cardeal Pedro Alíaco, induzido provavelmente por encontrar no seu Tractatus de ymagine mundi o passo da crónica relativo a Meroe, que no cap. 61 lhe é atribuído. Ele acha-se contudo noutras obras, reproduzido direta ou indiretamente de Flávio José; e demais seria de estranhar que ocronista, reverenciador da jerarquia eclesiástica, desse a um príncipe da Igreja o modesto tratamento de mestre. Ou por esta ou por outra razão, o eminente historiador da Geografia Raimundo Beazley desconfiou da identificação de Santarém, e sugeriu substitutos ao cardeal, sem todavia acertar; ela contudo prevaleceu entre nós, e aquele tratado passou a ser incluído nos lidos por Zurara, e daí nos lidos por D. Henrique, a quem não sei por que motivo concedeu todas as leituras do seu panegirista, e mais algumas.

 “Ora a General Estoria, donde Zurara copiou, esclarece em vários pontos que mestre Pedro é o autor da Historia Scholastica, portanto o magister trecensis (de Troyes), mais conhecido pela alcunha Comestor ou Manducator”'.

A identificação de João Duns Escoto pertence também ao Visconde de Santarém, repetindo-a Esteves Pereira.

Ocorreu-lhe como apelidação de um “mestre Ioham o Ingres”, referido numa nota da Crón. de Guiné (p. 297), explicativa da origem da palavra canícula, mas a identificação também não é exata.

Esta nota, adiante reproduzida no apêndice (B), propõe dois problemas: em primeiro lugar o da respetiva autoria, em segundo, o da identificação das duas autoridades nela invocadas, a saber, “o espoedor do Ouvydyo” (tornado a citar na p. 298) e o “mestre Ioham o Ingres”.

O Visconde de Santarém não considerou, em rigor, o primeiro problema, embora manifestasse hesitação na respetiva autenticidade; e quanto ao segundo, passou em claro a identificação do “espoedor do Ouvydio”, mas já não hesitou em escrever que o “mestre Ioham o Ingres” era “o famoso João Duns Scoto, religioso franciscano, cognominado o doutor subtil, um dos maiores filósofos da Idade Média, e professor em Oxford”.

O erudito historiador deixara-se guiar por considerações puramente externas, pois o simples conhecimento superficial da obra e do pensamento do insigne filósofo era de per si bastante para afastar a identificação, sequer mesmo a título de conjetural suposição.

Uma vez mais, pertence ao Dr. Duarte Leite a primeira explicação coerente dos dois problemas.

Quanto ao primeiro, afirmou com sólidas razões que esta nota, sob o ponto da autoria, é uma interpolação, não sendo portanto da pena de Zurara; e sob o ponto de vista da redação, é um plágio do cap. 26 do livro XXI da General Historia. Nestas condições, o “espoedor do Ouvydyo” é o “esponedor de Ovidio” referido nesta obra castelhana, como o “mestre Ioham o Ingres” é o “mestre Iuan Ingles” da mesma obra; consequentemente, o problema da identificação destes escritores desloca-se da Crónica de Guiné -- e portanto, da erudição de Zurara — para a General Historia.

António Solalinde, que editou este texto alfonsino com primores de erudição, ao defrontar-se com o problema destas identificações, propôs como resultado das suas indagações e dos seus raciocínios o seguinte: trata-se de dois comentadores medievais de Ovídio, sendo o “esponedor de Ovidio” um “doctor de los frayres menores” autor do Ovide moralisé; e o “mestre Iohan el Ingles”, o autor dos Integumenta Ovidii (séc. XIII), que E. Faral havia identificado com Iohannes de Garlandia ou Anglicus.

Como o Visconde de Santarém, o Dr. Duarte Leite nada disse sobre o “esponedor de Ovidio”, mas quanto ao “mestre Ioham Ingres”, aceitou a identificação com João de Garlandia, que Solalinde havia admitido.

Hoje, o problema destas identificações já se não apresenta como há três dezenas de anos, visto a publicação de alguns textos e o apuramento de certos factos e correlações terem abalado as opiniões estabelecidas por Solalinde, prematuramente arrebatado à erudição peninsular, que tanto honrava.


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