Como é óbvio, não pode afirmar-se com inteira segurança que a citação de “Policrato” seja de segunda mão, procedendo deste passo do Regimento de Príncipes em vez da leitura direta do próprio Polycraticus, como também se não pode afirmar que ela pertence a Martim Pais em vez de pertencer a Zurara. Não obstante, o citar-se Policrato em vez de Polyeraticus inclina fortemente o juízo para a citação indireta, e se é certo que o pregador podia conhecer o famoso livro de João de Salisbury no original latino como poderia conhecer a obra de Egídio Romano, assim no original como em versão, o mesmo se pode dizer de Zurara, cujas crónicas acusam a larga utilização dos escritos provenientes dos “altos Infantes”, cujas conceções políticas têm a marca visível das doutrinações da Baixa Idade Média e cujas ideias gerais são reflexo da cultura e dos ideais prezados pelos imediatos descendentes de D. João I.
João de Salisbury e Egídio Romano têm afinidades na conceção política, provenientes da identidade dos fundamentos de onde derivam e dos objetivos ético-religiosos que propõem à governação; e não só afinidades senão ainda continuidade da parte de Egídio Romano, pois como notou Juan Beneyto Perez é do “Sarisberiense que procedem conceitos como o do rei cabeça do reino e sua relação com o povo, semelhante à do corpo com a alma, o “rex pater patriae” e, finalmente, esse “rex diteratus”, que é considerado “quasi asinus coronatus».
No entanto, o Polycraticus, quer cronologicamente, quer pela construção clássica e pela elegante dicção literária, estava mais distante da sensibilidade e do didatismo da época de Zurara, tão cativa das distinções escolásticas e da lição intuitiva dos exemplários, do que o livro de Egídio Romano. Daí a fama e o crédito que este alcançou, como suma e remate do doutrinarismo político derivado de Aristóteles.
O infante D. Pedro, sem dúvida, o português que no seu tempo alcançou mais vasto e profundo conhecimento da teoria política e talvez o que mais vigorosamente sentiu a ambição do Poder e o prazer do mando, deixou indicada na Virtuosa Benfeitoria (Liv. II, cap. 26 in fine) a bibliografia pertinente à educação e conduta dos príncipes: “... os que desto mais quiserem saber, busquem o liuro da ensynança dos principes, compos meestre frey thomas de aquyno, e o liuro do rregimento dos principes, composto per frey gill de Roma. E o liuro do comuit fallamento das cousas que a todollos stados perteeçem, que foy ordenado per Ioham de galez e savera cousas mais specialmente perteeçentes a este”.
É singular que o Polycraticus de João de Salisbury não figure na relação, sugerindo a omissão que o infante somente alcançou do famoso doutrinal o conhecimento de segunda mão, dado que o cita, como os demais contemporâneos, sob a designação equívoca de Policrato e não com o verdadeiro título, mas seja ou não exata a sugerência, temos por sem dúvida que dos três livros aconselhados foi o de Fr. Gil de Roma, ou Egídio Romano, o que mais andou nas mãos dos nossos letrados da primeira metade do século XV.
Com efeito, o De regimine principum de S. Tomás de Aquino não sofre paralelo, pelo que às citações respeita, com a obra similar de Egídio Romano, cujas doutrinas e respetivos exemplos, colhidos frequentemente em Valério, constituem, ao que pensamos, a fonte mais direta e viva da teoria política e até das normas governativas dos dois primeiros monarcas da dinastia de Avis. Atentemos nalguns factos significativos.
Na fala que D. João I dirigiu ao conselho que convocara a propósito do projeto da expedição a Ceuta, começou por lembrar “as tres cousas prinçipaaes que sse rrequerem pera os conselheiros dos grandes senhores antre outras muitas que bem sabees que sam detreminadas em todollos liuros que os antigos escreueram pera insinança dos prinçipes”, as quais são, amor ao príncipe a quem ouverem de aconselhar, sabedoria e “grande segredo” (C, pp. 31-32).
Não pode afirmar-se que a alusão aos “livros... pera insinança dos prinçipes” tivesse ocorrido ao próprio D. João I, de quem Zurara disse noutro passo da mesma Crónica de Ceuta que “posto que elRey despemdesse pouco tempo em apremder çiemçia, todas suas pallauras porem eram ditas com muy gramde autoridade” (p. 81). Não obstante, é de considerar a referência expressa que o mesmo monarca fez ao “Regimento de Principes, que muitas vezes em minha camara ledes e ouvis” (P, cap. 8, p. 238), na fala que em Ceuta dirigiu à guarnição a cujo ânimo deixava entregue a defesa e manutenção da praça, e que merece transcrever-se:
“... e porque dês que o mundo foi creado nom soomente antre os homens, que são creaturas raçoaveis, mas antre as brutas animalias, sempre ha nos grandes ajuntamentos cabeça e superior; caa cl'outra guisa pereceriã todolos que se ajuntassem, como achareis no Regimento de Principes, que muitas vezes em minha Camara lêdcs, eouvis, onde diz, allegando Ipodonio Philosofo, que nunca muitas cousas poderiam fazer huma, se antr'ellas não houvesse huã soo, a que principalmente todallas outras nom fossem enderençadas, como se vê na muy deleitosa ordenança da Musica, que todallas vozes desacordariam se nom fosse huma antr'ellas ordenada, a que todallas as outras aguardassem; e esta necessidade conhecida por aquelle, que todallas cousas conhece, e sabe, lhe fez causa pera poer Principes na terra, asy como Reys, e Duques, e Condes, com todollos outros, que pera boa governança, e regimento do mundo pertencem; porque a congregação dos Povos nom perecesse, e assy foi esto, e he necessario, que nom somente antre muitos, mas ainda antre poucos se requere sempre algum, que tenha carrego, e regimento dos outros...” (P, p. 238).
A fala está tão entretecida de lugares comuns que talvez não seja possível reportá-la a passos determinados de qualquer texto; não obstante, a referência a “Ipodonio Philosopho” permite estabelecer indubitavelmente que o Regimento de Príncipes, que muitas vezes se lia na câmara real, era uma das duas obras deste título, respetivamente escritas por S. Tomás de Aquino e Egídio Romano, pois só elas consagram capítulos especiais, e com relevo, a este pretenso doutrinador político. É que “Ipodonio” é manifestamente corruptela de Hipodamo, o teorizante da polis que Aristóteles salvou da obscuridade e cujas ideias alcançaram notoriedade na Baixa Idade Média, precisamente pelo realce que S. Tomás de Aquino (De reg. princ., IV, caps. XI, XII e XIII) e Egídio Romano (De reg. princ., p. I, caps. XIX e XX) lhe deram; consequentemente, é num destes dois livros que cumpre filiar as ideias que insuflaram substância à fala do monarca.
Qualquer deles oferecia a temática política adequada aos tempos, às circunstâncias e sobretudo às responsabilidades da consolidação de uma dinastia incipiente, que com a renovação da orgânica estatal e dos dirigentes correspondia ao voto irredutível da independência nacional e à ambição da segurança da fronteira marítima pelo domínio das posições transfretanas, que haveria de prolongar-se e sublimar-se com a gesta dos Descobrimentos e da civilização do Ultramar. O juízo, no entanto, pende para o livro de Egídio Romano, quando se repara na comparação que a fala estabelece entre a organização política perfeita e a “deleitosa ordenança da musica”, a qual ocorre pelo menos duas vezes no De regimine principum do Doctor fundatissimus abonando-se com a autoridade de Santo Agostinho e de João de Salisbury, e, sobretudo, se atende ao facto do infante D. Pedro haver designado a obra de S. Tomás sob o título de Enssynança dos príncipes e a de Egídio Romano de Regimento dos Príncipes (Virt. Benf. II, c. 26) e se consideram as glosas de que o tradutor da versão castelhana do Regimento de Príncipes fez preceder os capítulos em que Egídio Romano se ocupa especialmente de Hipodamo.