Demais, não pode esquecer-se o renome e a influência que o livro de Egídio Romano alcançaram em Espanha, dele dizendo Don Juan Manuel (1282 † 1348), cujo cadáver foi enterrado num mosteiro dominicano de Portugal, no Libro de los Estados, que sem dúvida foi conhecido na corte portuguesa embora se lhe não acuse a existência na livraria real, que “si quisiéredes saber quales son las maneras et las costumbres de los buenos reyes et de los tiranos, et que diferencia es entre ellos, fallarlo hedes en el libro que fizo Fray Gil, de la Orden de Sant Agostin, que llaman De regimine principum, que quiere dezir Del governamiento de los Principes”.
Estes factos inclinam o juízo para o livro do Doctor fundatissimus, tanto mais que é no seu capítulo XVIII, da parte II do livro III, e em especial na respetiva glosa castelhana, que mais adequadamente se podem filiar as considerações relativas às “tres cousas prinçipaaes que se rrequerem pera os conselheiros dos grandes senhores” com que D. João I iniciou a fala que dirigiu ao Conselho convocado para saber “se era serviço de Deos” a tomada de Ceuta (C, 31-32).
Estas alusões de D. João I ocorriam em 1415, e em 1418 o infante D. Pedro punha de banda, por azos de guerra com Castela, a primeira redação do seu Trautado da Virtuosa Benfeyturia. Desconhece-se o texto primitivo desta obra-mestra do didatismo moral e político do nosso século XV, tão impossível de reconstituir pela crítica interna como é impossível indicar com exatidão as respetivas fontes para além do De beneficiis, de Séneca. Tudo concorre, no entanto, para inculcar a opinião de que já então o Infante consideraria o De regimine principum de Egídio Romano o mais idóneo dos doutrinais políticos e o mais instrutivo pelo recheio copioso de sentenças e de exemplos.
Informa Rui de Pina que D. Pedro traduzira esta obra para português, sem dizer de que idioma fizera a versão, isto é, se do latim, se do castelhano. Também não chegou até nós qualquer fragmento, de sorte que o mais que pode conjeturar-se acerca desta versão é que ela constituiria o manuscrito em “linguagem” intitulado “Regimento de Príncipes”, que existia na livraria de D. Duartea menos que não se subentenda na expressão “linguagem” o castelhano, porque neste caso poderia tratar-se também da versão de Fr. Juan Garcia de Castrojeriz que, como adiante mostraremos, D. Duarte teve presente quando redigiu as páginas sobre a virtude da prudência insertas no Leal Conselheiro.
O texto atual da Virtuosa Benfeitoria exprime um saber relativamente vasto, tem o vinco acentuado da formação escolástica, e possui a densidade que somente a maturidade às vezes concede. Ao que pode supor-se, está distante, no tempo e no desenvolvimento, do ensaio juvenil do infante —, donde o árduo problema das quotas que respetivamente cabem a D. Pedro e ao seu confessor, o licenciado Fr. João Verba, a quem ele entregou o rascunho (se esta é a palavra própria) da redação primitiva.
Sem embargo de tanta ignorância e de tantas dúvidas, pode admitir-se que a Virtuosa Benfeitoria teve por origem um núcleo de ideias acerca do estado e deveres do príncipe, colhidas no De regimine principum, de Egídio Romano. O sentido grave e religioso da Vida, que D. Filipa de Lencastre incutiu nos filhos pelo exemplo quotidiano de uma alma escrupulosa, digna e severa, o sentimento das responsabilidades da posição social que ocupava, no cimo da hierarquia das classes e dos indivíduos, que eticamente deveria semelhar-se na terra ao Deus dos Céus, a preocupação docente e normativa, que é uma das características da cultura do seu tempo, o convencimento, também partilhado por seus irmãos, de que os grandes acontecimentos do século — o cisma religioso, a ameaça do Islam, a instabilidade política — impunham a defesa intelectual e atuante das bases tradicionais da civilização, — teriam inclinado D. Pedro para este livro, que alguns espanhóis de prestígio e valimento recomendavam como obra-prima. Nenhum outro doutrinal político da Meia Idade se ocupava tão ordenada, extensa e profundamente da função ético-social da realeza e da família real, como o de Egídio Romano, nem qualquer outro proporcionava mais reflexões e exemplos adequados ao estado em que o Infante D. Pedro nascera e no qual quis manter-se com pleno conhecimento e satisfação dos seus deveres e responsabilidades.
Daí, talvez, a ambição do Poder e a amargura íntima de se sentir filho segundo, ou por outras palavras, o Mando por acaso e na interinidade; mas sejam ou não acertadas estas observações — a penetração no ser profundo deste infante é escorregadia pela abundância e fluência de adversativas —, é indiscutível que, pelo menos, o De regimine principum de Egídio Romano tem de ser colocado no grupo de escritos que D. Pedro utilizou com assiduidade.
As citações que dele faz, umas são diretas, outras alusivas. Nas diretas, contam-se a do final do cap. 26 do 1. II, no passo anteriormente transcrito, no qual aconselha, a quem queira saber que benefícios devem ser outorgados pelos príncipes “às pessoas de mais pequeno estado”, a par da “Enssynança dos principes que compos o meestre Frey Thomas de Aquyno” e do “liuro do Comuu fallamento das cousas que a todollos stados perteecem que foy ordenado per Fr. Iohão de Galez”, o “liuro do Regimento dos principes composto por Frey Gil de Roma; a do cap. 17 do liv. I (“diz o auctor do liuro do Regimento dos principes”) e a do cap. XIII do liv. II. Esta última merece particular atenção por descobrir qeu o infante D. Pedro utilizou a tradução castelhana, como mostram os seguintes cotejos:
Virtuosa Benfeitoria
“Assy o que outorga pode fallecer se nom souber do que tem certo recado, e errando com desauisamento fará pouquentamento em sua fazenda que lhe dará occa- siom pera seer scasso. En prouaçom desto se lee em o liuro do Regimento dos principes que a scacesa toma senhorio sobre os velhos, porque vendosse en muytas minguas sentiram a pena que padeciam, e rreceando de outra vez cayr em ellas dam de maa vontade aquello que teem.
(Liv. II, cap. 13)
Glosa castelhana al Regimiento de Principes de Egidio Romano:
«Lo cuarto les contesce por tres razones la primera, porque falles ce en ellos la vida e asi cuidan que les fallescerán todas las cosas, ca no fían de su fuerza e han de de lo que han, e por ende son escasos; la secunda es porque vivieron luengo tiempo e pudo ser que ovieran muchas menguas, e temiendo que vendrán a mengua guardan lo que tiene ne son escasos; la tercera es porque viven en memoria e no han esperanza de lo que ha de venir, ca la memoria es de las cosas pasadas e la esperanza es de las cosas que han de venir, e por ende, fiando de lo que tienen e no de lo que podrían ganar, son escasos. Lo quinto les contesce por estas mismas razones que son dichas, que no fían de lo que han de facer, mas de lo que han fecho e por ende son de mala esperança...”
Ed. cit., I, p. 303
Egidius Romanus, De regimine principum:
“... Sicut ergo senes in propriis corporibus deficiunt: in humoribus et in uita. Sic uidetur ipsis quia omnia eis deficiant.
Timentes ergo defectum pati sunt illiberales: et non audent expendere immo uidentes sic se cleficere: non confidunt de propriis uiribus. sed solum confidunt de his quae habent. Ponentes ergo in eis suam spem et confidentiam: non audent expensas facere ... “
(Cap. III, part. 4, liv. I.
Segundo a ed. Egidius de regimine principum,
s. l. n. d. (mas dos fins do sdc. XV ou principios do XVI).