Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

Como se vê, a citação do Regimento de Príncipes é exata e foi feita sem a preocupação da liberalidade. Não obstante, o emprego das palavras mingua e scacesa inclinam fortemente para a opinião de que o redator deste passo do texto atual da Virtuosa Benfeitoria se deixou influenciar pelo vocabulário e ritmo da versão castelhana, que não pelos do texto latino.

A comprovação pode ter-se por conjetural; não assim a que é estabelecida pelas duas citações alusivas ou indiretas, as quais têm por base a referência a Policrato.

É que estas referências não se reportam à designação de um indivíduo, mas ao título do livro de João de Salisbury —Polycraticus como se torna claro pelo seguinte confronto:

Virtuosa Benfeitoria

(Liv. II, cap.24)

"…E por quanto segundo diz policratom em o quinto liuro : os Conselheyros teem o logar do coraçom em o Corpo moral, e deles nace a uida que o principe faz com perseverança em amorio do poboo. E a forga perq he soportado o senhorio; e a ordenanga do regimento en que vive toda a Comunydade, Porem compre que elles seiam stremados antre muytos segundo screpue moyses em o primeiro Capitullo de Uteronomyo... “………………………………………………

(Do L. II, cap. 26)

“... O segundo benefficio que aos filhos deue seer feyto he o de boa enssynança em a qual elles deuem seer acostumados per tall guisa que posto que a sua uentura falega elles possam seer mantheudos per arte; uiuendo com honrra em aqueste mundo. Esto consyrou bem o muyto discreto emperador Outauiano, o quall segundo conta pollicratom em o sexto liuro fez enssynar seus filhos em todallas artes de cauallaria; a saber a correr, e em fazer saltos, e a nadar, e rremessar per todollos modos que se pode fazer, e a ferir, e com beestas, e peedras de maão, e de funda. E mandoulhes prender as maneras perque soportaryã melhor as peleias e as artes con que seriam em ellas mais auisados. Esto fez porque sse non auondasse, pera seerem louuados a nobreza da geeraçom, nem fosse abastosa pera os manteer d sua herança sentissem em sy meesmos que eram enssinados com tall dilligencia como se por so  uertude ouuessem rreteer as suas cousas, ou gaançar as alheas. E semelhauelmente fez enssynar suas filhas a fiar, e a tecer, e usauam de todallas artes em que sse occupar o stado das molheres, e que podessem fazer uestidos, e a coser, as mandou acostumar, dizendo que se a uentura as geytasse em desesperada mingua, ellas soubessem acorrer per arte aos fallecimentos.

Esto consyrem quaaesquer geeradores, e tirando a ociosidade a seus filhos fagam que a preguiga nom tome senhorio sobre as carnes tenrras... “

Glosa castellona al " Regimiento de Principes” de Egidio Romano

(Ed. cit., III, p. 181)

“ .,. Y por eso los antíguos sabios escogieron por consejeros los viejos, los cuales llamaban cónsules, que quiere decir consejeros: e éstos tienen lugar del corazõn en la república o en la cibdad segin que dice Policrato, ca assi como el corazõn da vida a todas las partes del cuerpo, asl estos por sus buenos consejos, dan vida e salvan la cibdad...”

(Do vol. II, pp. 126-127)

“... si todos los padres deven disciplinar e informar bien a sus fijos, mucho más los reyes, ca en esta manera los fijos son refrenados de los males e de los pecados e son informados en buenas costumbres e en virtudes e son aparejados a sufrir cosas ásperas e duras porque sean dignos de haver el heredamiento de sus padres. E en esta manera, según que dice San Agustin los nobles antíguos ficieron ensennar sus fijos sabiamente, asi como paresce de Filipo, padre de Alejandro, e de otros muchos en que pusimos enxemplos en la segunda parte del libro primero. E desto cuenta Policrato en el VI.º libro, capitulo VIIIº, que el Emperador Octaviano fizo ensennar e usar todos sus fijos los grados de la caballeria e correr e saltar e a uso de jugar esgrima e a uso de estocar e cortar e lanzar piedras con la onda e dardos con las manos e en todas aquellas maneras que se puede acometer a sufrir batalha, ca magüera la sangre nueva les pudiese complir a la gloria deste mundo, para heredar los bienes de su padre, empero con tan gran acucia los fizo ensennar como si nunca oviesen de haver los sus bienes e oviessen de ganar los aienos com virtudes. Eso mismo fizo facer a las sus fijas, ca las fizo ensennar a filar e a tejer e facer pannos nobles, asi como si oviesen de vivir a pobreza e por su arte oviesen de ganar su vida . . . “

J. de Salisbury, Policratus.

(Liv. V, cap. XI : De his qui in republica obtinent locum cordis...).

« Cordis locum, auctore Plutarcho, senatus obtinet. Senatus vero, sicut majoribus placuit, officii no. men est, et habet actatis nomen. Siquidem senatus dicitur a senectute Quid enim nobilius est coetu senum, qui emeriti a vulgaribus officiis, ad consili et regiminis officium transeunt, et in marcido corpore exerunt mentis vires? Eo sapientiae magis apti negotiis, que in exercitiis corporis minus possunt. Eorum utique tantus honor exstitit apud Graecos, ut duces reipublicae nusquam procederent, nihil egregiam ageretur, quod senes instituti non inducerent, aut approbarent, et quod maeis est ab initio urbis conditae, nomina eorum aureis litteris scripta sunt.

Ipsique patres conscripti appellati, qui alios sapientia, aetate, et effectu paterno praecedebant. Penes istos consiliorum erant auctoritas et omnium publice gerendorum... “.

(Migne, Pat. Lat., t. 190,

col. 560).

(Cit. ed., idem., cols. 595 e 596).

"... Quis Octaviano Augusto felicior aut major? Filios etsi non genuerit, adoptavit, quibus etsi sufficere posset clarus sanguis ad gloriam, et bona hereditaria magis ad copiam, quam ad usum, ea tamen diligentia instituti sunt, ac si sua retineri, vel aliena acquiri nequaquam possint, nisi per virtutem. Eos ergo ad gradum militarem, et cursum, et saltum fecit excitari, usumque natandi, et caesim et punctim feriendi, et jaciendi missilia, et lapides manu vel funda docuit, et qualiter bellum omne aut sustineri debeat, aut inferi...

Filias quoque legitur praefatus Augustus sic in lanificio fecisse institui, ut si praeter spem eas in extremam paupertatem fortuna projecisset, vitam possent arte deductis facultatibus exhibere. Nam et nendi, texendi, et acum exercendi, vestesque formandi, fingendi, componendi, non modo artem, sed usum habebant er consuetudinem .. . )

Os dois passos da Virtuosa Benfeitoria e do Regimento de Príncipes acusam manifestamente a atitude de quem discreteia com algum à-vontade perante a literalidade de umas páginas que tem diante de si; não obstante, é igualmente manifesto, sobretudo pelo segundo cotejo, que o infante teve presente a versão castelhana e não o original latino de João de Salisbury. Se tivesse lido e manuseado diretamente o Polycraticus, não designaria este livro por Policratrom, que é evidentemente o Policrato da versão castelhana e cuja designação, que saibamos, pertence a Fr. Juan Garcia de Castrojeriz; e além disto, não teria rnedievalizado a tradução com o ritmo de pensamento e com palavras cuja identidade com esta versão se não explicam satisfatoriamente pela mera coincidência casual das mesmas associações de ideias.

Daqui a conclusão de que o infante D. Pedro conheceu a obra de Egídio Romano e utilizou a versão que do famoso doutrinal político fez Fr. Juan Garcia de Castrojeriz.

Esta conclusão, que pode considerar-se fundada, é como que confirmada pela utilização que da mesma versão fez D. Duarte no Leal Conselheiro, que aliás cita expressamente o “livro do Regimento dos Pryncypes” (cap. LII).

Com efeito, o monarca teve-a na frente ao redigir o capítulo (LI) Da virtude da prudencia em special, a ponto de deverem considerar-se os períodos abaixo reproduzidos como tradução da seguinte página do texto castelhano:

Do Leal Conselheiro, cap. LI (Ed. Piel, pp. 215-216).


?>
Vamos corrigir esse problema
REDES SOCIAIS
SUBESCREVA JOAQUIMDECARVALHO.ORG
NEWSLETTER JOAQUIMDECARVALHO.ORG