Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

Consequente com esta maneira de ver, que era também a da corte de D. João I, como sugerem certos factos, Zurara apresentou com plena boa-fé o horóscopo do infante D. Henrique (G, 48-49), mostrando assim que acamaradavam no seu espírito, sem pugna hostil, a “predestinaçom da fortuna” e o “devinal juizo”, para empregar as próprias palavras que ele emprega (G, 147).

Por isso, isto é, por não haver apreendido claramente o contraste da influição necessitante da conceção astrológica com a liberdade inerente à omnipotência divina, foi levado a paradoxos, dos quais o mais significativo é o seguinte:

Numa página da Crónica de Guiné exalta o poderio divino, com a vibrante declamação deste passo do cap. XXV: — “Oo tu eellestrial padre, que com tua poderosa maão, sem movimento de tua devynal essencia, governas toda a infiinda compahya da tua sancta cidade, e que trazes apertados todollos eixos dos orbes superiores destinguidos em nove speras, movendo os tempos das idades breves e longas, como te praz”; e noutra página desta mesma Crónica, no capítulo XXVIII, replica a Santo Agostinho por haver deduzido do poder divino a falsidade dos juízos astrológicos — “posto que Santo Agostinho screva muytas e santas pallavras, reprovando a presdistinaçom das influencias cellestriaaes, em outras partes me parece que acho autoridades contraoras, assy como de Job, que disse que nos posera Deos termo que passar non podyamos, e outras muytas da Sancta Scriptura as quaaes leixo por me nom alongar...”

A ingénua sinceridade deste contraste mostra claramente que Zurara teve uma conceção da Astrologia que pode designar-se de temperada. Crente sincero no poder de Deus, admitiu ao mesmo tempo a influição das “constelações”, como mostra o seguinte passo da Crónica do Conde D. Duarte, que por haver sido concluída em 1468 assinala o último pensamento do cronista relativamente a tal doutrina:

“... a natureza nom quis a todos prover de igual fortalleza. E cada hum nom pode receber mais que aquelo que lhe he dado polas influencias do Ceo, ca postoque todo dom comprido e prefeito descenda do Padre dos lumes, segundo diz Sanctiago em sua primeira Canonica, todavia prouve aaquelle summo dador que houvesse hi corpos superiores, sob cuja sugeiçom e senhorio vivem os inferiores, e tão fortemente sujugão e apremão aquellas cousas de cima a estas debaxo, que se nom for por especial privilegio outorgado pello formador da natureza, nom poderião os homens viver per outra ordenança. Mas nosso Senhor Deos em cuja mão e poderio som todallas cousas, segundo dixe aquelle grande Philosophal Theologo Alberto Magno, pôs aos homens entendimento e memoria, per que se possão desviar das cousas contrairas, e chegar aas proveitosas; e que pello entender, assi como per divinal espelho podessem ver as cousas de longe, tanto mais quanto cada hum he chegado aas virtudes. Porem de necessidade está que todollos corpos sensitivos, ora sejão creaturas racionais, ou cada huma das outras em que nom ha razão, todas naturalmente hão d'haver inclinação aaquellas cousas, a que os a costelação primeiramente inclinou. Assi o affirma aquelle grande Astrologo Tolomeu que foy Rey do Egipto, e Rabi Mousem, e Aalcabom Radião, e outros sabedores desta arte aquelles que de todo nom quiserão leixar a força aas Estrellas. E dalli fica seguir as obras boas ou maas, segundo cada hum he ajudado, ou estorvado de seu natural entender, ou da graça Devinal” (D, 113-114).

Além da posição doutrinal de Zurara, esta página indica ainda os “sabedores” que a seu juízo reconheciam algum fundamento à Astrologia, isto é, atribuindo fundamentalmente valor à Astronomia, “de todo nom quiserão leixar a força aas Estrellas”.

Há, assim, a juízo de Zurara, que é aliás o de toda a gente com algumas luzes do assunto, dois grupos de astrólogos: os estremes, ou puros, que aceitam sem restrições a influição decisiva dos astros e dos movimentos dos corpos celestes sobre o mundo sublunar e respetivos eventos, e os médicos, ou temperados, que com serem principalmente astrónomos ou teólogos nem por isso deixavam de reconhecer que todos os corpos sensitivos, racionais ou irracionais, sofriam a “inclinação aaquelas cousas, a que os a costelação primeiramente inclinou”.

Atentemos, pois, nos “sabedores” desta segunda categoria, ou sejam Tolomeo, Rabi Mousem e Alcabom Radião, cuja conceção aliás parece a mais coerente com a ideia de Natureza e de correlação dos fenómenos naturais que dominou entre nós no século XV por influência do pensamento tomista.

A despeito da confusão do astrónomo do Almajesto com o seu homónimo da dinastia dos Lágides, a identificação do “grande estrollogo Tollomeo” não oferece dúvidas, e já atrás ficou exposta. Se algo há agora a notar é o facto de Zurara apresentar Ptolomeu entre os “sabedores” que não levaram longe a fronteira da Astrologia, o que parece indicar que o juízo do cronista atendeu mais ao astrónomo do Almajesto do que ao astrólogo do Centilóquio e do Quadripartito.

As duas outras identificações não têm a facilidade desta.

Com efeito, a designação de “Rabi Mousem” é tão cheia de dúvidas, que somente dá margem a conjeturas.

No século XIV, e ainda porventura em tempos de Zurara, por tal se designava Moses Maimónides, como mostra o Livro da Corte Imperial ao citar o “grande mestre rreby moyses”, o qual é sem dúvida Maimónides, pois a designação é imediatamente seguida da referência ao Moreh Nebuchim, ou seja o “liuro que fez do aderençamento das cousas perpexas”. Esta identificação, porém, não tem fundamento, pela razão simples de que o Moreh Nebuchim, tão sabiamente traduzido e anotado por S. Munk sob o título Le guide des égarés, só inci-dentalmente alude à Astrologia, e de maneira tão fugaz que toma impossível reportar a citação de Zurara a esta figura máxima do pensamento israelita medieval. Grande filósofo, representando na escolástica judaica o que S. Tomás de Aquino representa na cristã, Maimónides não só não pode ser contado entre os tratadistas da Astrologia como deve ser incluído entre os adversários da tenaz credulidade, mormente pela Carta aos Doutores de Marselha.

A mesma designação aparece na seguinte menção do inventário dos livros do arcebispo de Toledo (1266-1275) D. Sancho: Libro rabi Moyses cuius principium est Dixit Moyses egipcius..., mas ao contrário do anterior não logramos elementos que permitissem a identificação do respetivo autor e do seu livro.

Pela relação direta do nome “Rabi Mousem” não alcançamos, pois, um esclarecimento —, e indiretamente também não, embora sejamos levados a admitir que Zurara teve em vista um dos astrólogos que colaboraram na ingente obra de Afonso o Sábio. Sendo assim, é possível que se tratasse de Iudah ben Moses, que por encargo do sábio rei castelhano traduziu o Libro de las cruces, o Libro de los juicios de las estrellas, de Aben Ragel, e o Libro de las formas et de las imagenes que son en los eidos et de las virtudes et de las obras que salen de ellas en los cuerpos que son de yuso del cielo.

A citação de “Alcabom Radião” oferece idênticas dificuldades e dúvidas. Pode pensar-se que este nome estropiado designa o astrónomo árabe do século X, Alcabício (Abulçakr Abdelaziz ben Othman ben Ali Alcabisi), autor do divulgadíssimo Introductorium ad juditia Astrologiae, logo dado à estampa nos primeiros tempos da imprensa com o título de Libellus Ysagogicus Abdilazi, id est servi gloriosi dei: qui dicitur Alchabitius ad magisterium iuditiorum astrorum: interpretatus a loanne Hispalensi: scriptumque in eodem a Iohanne Saxoniae editum: utili serie connexum incipiunt, Veneza, 1485, posteriormente reeditado nesta mesma cidade em 1502 e 1521. Temos, porém, por mais verosímil que se trate de Ali ibn Ridwan (Ali Abenriduan Benali Abenchafar el Misri, Abulhasan († 1061? 1067?) cujo nome se tornou famoso no Ocidente pelos comentários aos livros astrológicos de Ptolomeu, a saber, ao Tetrabiblion (Quadripartitae constructiones, De iudiciis astrologicis ou ainda Apotelesmata), cuja versão latina circulava manuscrita e foi dada ao prelo em Veneza em 1484 e 1493, e ao Centilóquio, de que também existem manuscritos latinos e edições tipográficas, designadamente de Basileia, em 1533, e de Nuremberga, em 1535.


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